Pessoas com as quais construiu rede de afeto, chocadas com o feminicídio da cabo do Exército, recordam sua dedicação à arte.
O feminicídio da cabo do Exército Maria de Lourdes Freire Matos, de 25 anos, chocou a capital e o país pela crueldade. Ela foi morta na última sexta-feira (5/12) por um soldado que, após o crime, ateou fogo ao local, o próprio quartel, e fugiu em seguida. Inúmeras manifestações destacaram a dedicação da jovem à família, aos amigos, ao trabalho e à música. Bondade, simpatia e gentileza são traços que marcavam sua personalidade.
A comunidade da Escola de Música de Brasília (EMB) ficou profundamente abalada. Foi lá que Maria de Lourdes fez parte da sua formação em música e saxofone, onde construiu uma rede de afeto. E essa arte era uma paixão na vida da jovem. Braulistede de Souza, 50, que entrou na EMB com a jovem em 2024, recorda da amiga como alguém “extremamente dedicada, que já sabia que queria a música como profissão e tinha um objetivo muito claro na cabeça”. Ela conta que Maria de Lourdes se afastou da escola nos últimos meses por conta do trabalho no Exército, onde havia entrado recentemente. “Ela estava muito magrinha de tanto trabalhar, mas sempre delicada, sempre gentil. A notícia da morte dela pareceu mentira”, lamenta.
Maria foi lembrada com carinho por Ana Cecília Barbosa, que a conheceu em 2016, ainda no projeto Música e Cidadania, no Paranoá. “A Maria era superamorosa, simpática, muito amistosa. Quando voltou para a escola, parecia que tinha se reencontrado com a música”, diz. Para Ana, é difícil aceitar o que aconteceu. “Ela estava feliz por ter passado no concurso, descobrindo seu caminho. Nada faz sentido até agora.”
Professor de saxofone que acompanhou Maria durante o ciclo básico e parte do técnico na EMB, Leandro Barcelos destaca a força da jovem em um ambiente majoritariamente masculino. “O saxofone ainda é um meio muito masculino e, mesmo assim, ela enfrentava tudo com seriedade e talento. Era estudiosa, dedicada, e já ajudava outros colegas”, afirmou. Segundo ele, Maria chegou a falar com as colegas sobre o preconceito enfrentado por mulheres na música. “Ela tinha muito claro o lugar que queria ocupar — e sabia que seria um longo caminho”, ressaltou.
Raildo Ratho, professor de teoria musical, carrega a lembrança recente da última vez em que viu Maria, quando ela buscou seu certificado do ciclo básico na escola. “Parecia mais nova do que era, muito delicada, muito cuidadosa com tudo. Era uma aluna empenhada e apaixonada pela música”, conta. Ele acredita que, se a vida não tivesse sido interrompida, Maria provavelmente voltaria à unidade como professora. “Ela tinha perfil para isso: estudava, ajudava, inspirava. Era daquelas que fazem da escola a sua segunda casa.”
Controvérsia
Após ser preso, Kelvin Barros, 21, negou o crime, mas confessou em seguida. No entanto, deu cinco versões no depoimento à Polícia Civil (PCDF). Há dois inquéritos sobre o caso, um na PCDF e outro na Justiça Militar da União (JMU). Em ambos, ele responde por feminicídio, incêndio, furto e fraude processual. Mas ele não pode ser julgado nos dois juízos.
A notícia, no fim de semana, de que a Justiça Militar da União (JMU) comunicou ao Tribunal do Júri em Brasília que irá julgar o caso abalou a família da jovem, pois, segundo a defesa da vítima, a pena seria menor. O motivo é que, na Justiça Militar, o feminicídio é uma qualificadora.
O Superior Tribunal Militar (STM) divulgou que, por se tratar de um crime cometido por militar contra militar, em local sujeito à administração castrense, Kelvin Barros deve ser julgado pela Justiça Militar da União (JMU). Segundo o STM, o caso é classificado como crime militar por extensão. Isso com base na Lei 13.491/2017, que ampliou a competência da Justiça Militar para julgar delitos previstos fora do Código Penal Militar — como crimes ambientais, tráfico de drogas e, nesse caso, o feminicídio. Afirmou ainda que o processo será conduzido “com todo o rigor que o caso requer” e que a pena aplicada, em caso de condenação, é a mesma prevista para o feminicídio na Justiça Comum.
De acordo com a PCDF, após o término, o Tribunal do Júri deve encaminhar o conflito de competência ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que definirá se a JMU julgará o caso. Já o STM informou que ambos os inquéritos irão para o JMU, quando a Justiça de Brasília declarar incompetência para julgar o caso.
Um ponto sensível é a capacidade institucional da Justiça Militar para lidar com crimes que envolvem violência de gênero, pondera o advogado Berlinque Cantelmo, especialista em direito militar. “A violência de gênero exige abordagens específicas, protocolos próprios e uma compreensão social mais ampla sobre padrões de feminicídio”, explica.
“A Justiça Militar, embora técnica, foi estruturada para tutelar a disciplina e a hierarquia, não necessariamente para enfrentar crimes de violência contra a mulher”, ressalta. Segundo ele, casos como o da cabo Maria de Lourdes evidenciam lacunas importantes no sistema. “Situações como esta mostram a necessidade de aperfeiçoamento legislativo e institucional para garantir respostas penais adequadas, independentemente da jurisdição competente”, analisa.
Apesar da ponderação, ele explica queque, se confirmada a motivação de gênero, “o crime pode ser enquadrado como feminicídio de natureza militar por extensão, e teria pena de 20 a 40 anos”. Sobre isso, ele acrescenta que há três tipos de crimes militares: próprios, impróprios e por extensão. “Os próprios são aqueles previstos exclusivamente no Código Penal Militar. Os impróprios aparecem simultaneamente no Código Penal Militar e no Código Penal comum. Já o crime militar por extensão é o previsto em legislação extravagante, como a Lei Maria da Penha, ou em dispositivos existentes apenas no Código Penal comum.”
Ele também lembra a Lei 13.491/2017 citada pelo STM. “Os elementos objetivos do caso — ambos militares, fato ocorrido dentro de instalação militar e durante atividade de serviço — em tese atendem aos critérios clássicos da Justiça Militar”, afirmou.
Até o fechamento desta edição, o corpo de Maria não havia sido liberado pelo IML para enterro.
Tribuna Livre, com informações da comunidade da Escola de Música de Brasília (EMB)










