01/08/2025

A luta de mulheres para esclarecer esquema de adoções em hospital de São Paulo: ‘Meu maior desejo é conhecer minhas origens’

Alessandra decidiu investigar seu passado - (crédito: Caio Guatelli/BBC)

Sumiço de arquivos do Hospital Sorocabana, zona oeste da capital paulista, pode ocultar esquema de adoção ilegal

Alessandra Iacchetti tinha apenas 16 anos de idade quando perdeu o pai e a mãe em um período de oito meses. Ela estava sozinha em seu apartamento, lidando com o luto e quase totalmente desassistida, quando tudo ficou ainda mais confuso.

Uma mulher chamada Elza, que ela mal conhecia, telefonou para dizer que “precisava contar uma coisa” e que “não podia ir para o túmulo” sem fazê-lo. A mulher havia sido vizinha de mãe de Alessandra no bairro da Vila Romana, na Zona Oeste de São Paulo. O que ela tanto precisava desabafar mudou a vida de Alessandra para sempre.

“Ela revelou que eu era adotada”, lembra Alessandra. Além de uma adolescente órfã tentando se virar para sobreviver no dia a dia, ela precisaria lidar com a notícia e começar uma jornada pessoal para descobrir suas origens.

“Sua mãe não queria que você soubesse que foi adotada. Ela descobriu que não podia engravidar quando perdeu um bebê porque estava com toxoplasmose”, disse Elza. Segundo ela, Alessandra fora adotada, de forma informal e ilegal, no Hospital Sorocabana, no bairro da Lapa.

“A Elza contou que um homem com contatos dentro do hospital fazia a ‘ponte’ para a adoção. Eu seria entregue para a minha mãe adotiva já logo depois do parto”, conta Alessandra. “Foi aí que apareceu uma moça que estava com quatro meses de gravidez e não queria ficar com o filho. Minha mãe foi apresentada a ela e combinou tudo.” Segundo Elza, a mãe biológica de Alessandra se chamava Maria e era de Minas Gerais.

A certidão de nascimento de Alessandra diz que ela nasceu, em um parto feito em casa, no dia 9 de fevereiro de 1992. Alessandra sabe que a primeira informação é mentirosa e que a segunda, muito provavelmente, também. Elza garantiu que compartilhou tudo o que conhecia sobre o caso. Era pouco, mas talvez o suficiente para Alessandra investigar seu passado, não fosse pelo apagamento de registros, o descaso e a mais absoluta bagunça envolvendo o Hospital Sorocabana.

Inaugurado em 1955, o Hospital Sorocabana foi construído em um terreno do governo do estado e durante décadas serviu de referência para os moradores da Zona Oeste de São Paulo. Era administrado pela Associação Beneficente dos Hospitais Sorocabana, mas se afundou em problemas financeiros, má administração e suspeitas de corrupção em sua gestão. Fechou as portas em 2010 e só foi parcialmente reaberto em 2020.

Em 2021, a prefeitura de São Paulo recebeu a transferência de titularidade do prédio do hospital. Desde então, vem promovendo reformas que, teoricamente, ampliarão sua capacidade de atendimento ao público.

Mesmo com todo o imbróglio jurídico e administrativo envolvendo o Sorocabana, sua reabertura ofereceu a oportunidade para que Alessandra acessasse seus arquivos e, quem sabe, descobrisse algo sobre seus pais biológicos. Não foi o que aconteceu.

“Um funcionário da Subprefeitura da Lapa disse que eu realmente tinha direito a acessar os documentos. Que o hospital foi fechado do jeito que estava e que provavelmente os arquivos estavam lá dentro. Ele explicou que o certo seria eu entrar com uma ação judicial, mas que demoraria muito e talvez fosse mais rápido eu pular o muro e procurar eu mesma”, conta Alessandra.

Esse limbo documental fica claro quando se tenta buscar qualquer informação sobre o acervo de prontuários do hospital. A BBC News Brasil entrou em contato, mais de uma vez, com a prefeitura e o governo estadual de São Paulo, mas ninguém soube informar onde estão os documentos ou se eles ainda existem. Também não houve orientação sobre como, exatamente, Alessandra poderia tentar encontrá-los.

Sem ajuda dos meios oficiais, Alessandra passou a compartilhar sua história nas redes sociais e a frequentar grupos de pessoas com casos parecidos. De início, sem descobrir nada relevante. Até que ela conheceu Eliane.

“Quando eu tinha uns 10 anos, em 1990, minha mãe ficou grávida de novo. Ela morava na casa de uma família e decidiu dar a criança porque não tinha condições de cuidar dela. Além disso, meu pai não era uma pessoa boa. Ele espancava a gente e vivíamos meio escondidos, fugindo”, conta Eliane Gomes Marques.

Na época, Eliane tinha um irmão, já falecido, dois anos mais velho. Sua mãe, Erenilda Gomes dos Santos, estava separada do pai e engravidou do companheiro de outro relacionamento.

Logo apareceram interessados no bebê que estava a caminho. “Um casal de conhecidos da dona da casa onde minha mãe morava e trabalhava ficou sabendo da história e se ofereceu para ficar com a criança”, conta Eliane. “Era uma menina e, quando ela nasceu, o casal foi lá no hospital buscá-la”.

Segundo Eliane, o casal teria saído do hospital com o bebê sem maiores dificuldades, como se fossem seus pais biológicos. E o hospital, no caso, era o Sorocabana.

Alessandra e Eliane se conheceram e, por algum tempo, alimentaram a expectativa de que fossem irmãs. Afinal, as histórias envolviam o mesmo hospital e datas muito próximas. Alessandra não sabe quando nasceu, e Erenilda também não lembra a data de nascimento exata da filha dada para adoção. O que dá para afirmar com certeza é que ambos os casos aconteceram no início da década de 1990.

Mas uma outra coincidência tornou tudo ainda mais intrigante: a mãe adotiva de Alessandra era italiana. E Erenilda sempre achou que o casal que levou sua filha também era italiano.

“Ela (Erenilda) não consegue ter certeza se eram italianos de fato. Mas, pelo tipo físico, o modo de se expressar e o jeito que falavam, ela sempre suspeitou que sim”, diz Eliane. “Tem uma única pessoa que está viva até hoje e poderia esclarecer o que aconteceu. Mas ela insiste muito em não irmos atrás dessa história. Fala para a gente não mexer com isso.”

A família segue em busca do paradeiro da irmã de Eliane, mas, assim como Alessandra, esbarra no desaparecimento do espólio do Hospital Sorocabana. Desaparecimento que, além de descaso, pode ocultar algo maior: um possível esquema paralelo de adoções.

Alessandra soube de pelo menos mais dois casos muito parecidos com o dela envolvendo clínicas e hospitais da região da Lapa. “Uma dessas moças também tinha pais adotivos italianos.”

Alessandra está falando de Clara Picco. Ela conta que foi adotada, em 1973, por italianos em uma clínica na Lapa. “Na minha certidão, consta que eu nasci em casa. Mas isso não é verdade e não faço ideia de quem sejam meus pais biológicos. Meu maior desejo hoje é conhecer minhas origens”, diz Clara. Para ela, a clínica onde nasceu funcionava como fachada para intermediar adoções conduzidas ilegalmente.

Por meio de Clara, a BBC News Brasil chegou a outro caso de adoção envolvendo o bairro da Lapa e, possivelmente, o Hospital Sorocabana. Adriane Gonçalves também descobriu que seus pais biológicos eram, na verdade, adotivos.

“Acredito que cheguei até meus pais adotivos por meio de uma intermediária que supostamente arrumava pais para bebês abandonados ou indesejados”, diz Adriane.

Segundo sua certidão de nascimento, ela teria nascido no Sorocabana em 19 de abril de 1968. Mas ela não tem certeza se realmente nasceu lá porque, quando tentou descobrir algo sobre seus pais biológicos, se viu em uma situação parecida com a das outras personagens desta reportagem.

“Na época em que decidi procurar por meus pais biológicos, quando tinha 25, 26 anos, eu fui até o Sorocabana. Falei que queria os registros das mães que deram à luz no dia em que eu [supostamente] nasci. Me disseram que infelizmente houve um incêndio e os arquivos se perderam”, conta Adriane. “Foi esse o ‘cala a boca’ que me deram”.

Também no caso de Adriane, impera o quase absoluto silêncio sobre suas origens. Sua mãe ainda está viva, mas se recusa a contar a verdade. O único fiapo de informação que Adriane tem é, na verdade, uma suspeita.

“Parece que a intermediária se chamava dona Chica”, conta. “O nome dela é muito presente nos meus diários de bebê. Tenho a memória de ela ir à minha casa levar presentes. Lembro dela sorrindo… Tenho guardado isso. É engraçado, porque parece que foi a primeira pessoa que eu vi quando nasci e ficou registrada.”

“Enquanto meus pais adotivos estavam vivos, eu nunca suspeitei de nada. Mas hoje, olhando para trás, vejo várias brechas na história. Por exemplo, a de que minha mãe tinha 48 anos quando eu nasci”, conta Alessandra.

“A moça que ficou com meu pai no hospital antes de ele morrer disse que ele não parava de falar ‘minha filha sempre foi 100% honesta comigo. Eu não fui 100% honesto com ela’.”

Tribuna Livre, com informações da BBC News

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