Trabalho de agentes resultou na prisão, em setembro passado, do então deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva, o TH Joias, e do ex-secretário estadual de Esporte e Lazer Alessandro Carracena
Na manhã de 23 de novembro de 2020, agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de plantão na BR-116, na altura de Vitória da Conquista, na Bahia, mandaram parar um ônibus de turismo. O veículo estava quase concluindo uma viagem de mais de 20 horas, de São Paulo até Poções, no interior baiano. Durante a revista no compartimento de passageiros, o peso de duas mochilas chamou a atenção dos policiais, que pediram que seus donos as abrissem.
No interior, havia 23 pistolas calibre 9 mm, produzidas pela fabricante croata HS Produkt, com os números de série raspados.
O que seria só mais uma prisão em flagrante durante uma abordagem de rotina acabou se tornando o primeiro passo de uma das maiores investigações sobre tráfico de armas e drogas da história do país — que, em seu mais recente desdobramento, revelou a infiltração do Comando Vermelho (CV), a maior facção do Rio, na política fluminense.
Desde 2023, o fio puxado pela Polícia Federal a partir das pistolas apreendidas já levou para a cadeia militares paraguaios de alta patente, o maior contrabandista de armas da América do Sul e, em setembro passado, o então deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva, o TH Joias, e o ex-secretário estadual de Esporte e Lazer Alessandro Carracena.
Teia de laços
A conexão entre o submundo do crime e os meandros do mundo político do Rio foi exposta graças a uma série de quebras de sigilo autorizadas pela Justiça que, ao longo dos últimos cinco anos, revelaram uma teia de laços entre contrabandistas de armas, militares paraguaios, integrantes de facções, policiais e políticos do estado.
O estopim que levou ao desenrolar do novelo, no entanto, foi um padrão percebido por agentes do Serviço de Repressão ao Tráfico de Armas e do Grupo Especial de Investigações Sensíveis (Gise) da PF da Bahia nas pistolas encontradas no ônibus em Vitória da Conquista: em pouco mais de um ano, cerca de cem armas do mesmo calibre e do mesmo fabricante — bastante incomum no mercado ilegal brasileiro — foram apreendidas em cinco estados diferentes.
Os policiais federais, então, passaram a trabalhar na recuperação dos números de série, que haviam sido propositalmente raspados, para tentar rastrear a origem das armas. A partir de um trabalho da perícia da PF, sinais identificadores de 13 armas foram revelados e enviados ao fabricante.
A resposta: todas as pistolas haviam sido importadas para o Paraguai pela empresa International Auto Supply (IAS), com sede em Assunção.
A empresa virou o foco da apuração: documentos e trocas de mensagens de funcionários obtidos pela PF, a partir de quebras de sigilo, revelaram que a IAS adquiria as pistolas por cerca de 220 euros (cerca de R$ 1.400), simulava sua venda de forma legal para terceiros e as repassava a comparsas que suprimiam seus números de série para abastecer grupos criminosos brasileiros.
Segundo a investigação, o mesmo processo se repetia com fuzis tchecos, também endereçados a criminosos brasileiros de forma clandestina. O esquema contava, de acordo com a PF, com o auxílio de militares corrompidos da Dirección de Material Bélico (Dimabel), órgão paraguaio de controle de armas, que aprovavam as importações e vendas simuladas em troca de pagamentos de propina.
Com base no inquérito, a PF deflagrou, em 5 de dezembro de 2023, a Operação Dakovo para cumprir 25 mandados de prisão — oito no Brasil e 15 no Paraguai. Entre os alvos estavam o general do Exército paraguaio Jorge Antonio Orue Roa, ex-diretor da Dimabel, e o argentino Diego Hernan Dirísio, dono da IAS e apontado pela PF como o maior contrabandista de armas da América do Sul. Atualmente, o governo brasileiro quer que Dirísio, preso na Argentina, seja extraditado para ser julgado no Brasil.
A investigação também identificou integrantes de facções do Brasil que compravam as armas da IAS. Um deles era Fhillip da Silva Gregório, o Professor, um dos chefes do tráfico do Complexo do Alemão, que adquiria os fuzis da empresa de Dirísio por meio de um intermediário, o paraguaio Júlio Cesar Cubas Cantero, o Taito, responsável por transportar o armamento da fronteira até o Rio de Janeiro.
Professor teve a prisão decretada pela Operação Dakovo, mas não foi localizado até ser morto com um tiro na cabeça em junho passado. A polícia concluiu que o traficante tirou a própria vida.
A partir das trocas de mensagens extraídas das contas de WhatsApp de Professor e de Taito, um novo personagem veio à tona: um homem com o apelido de “Índio” era sócio de Professor nas remessas de armas e munição que vinham para o Rio.
Numa das conversas, de maio de 2022, Professor e o comparsa combinam dividir o pagamento de uma remessa de fuzis que havia acabado de chegar: “Eu vou pagar o cara agora, esses quatro aí que chegaram hoje. Paga dois que eu pago dois, tá ligado?”, explicou Professor. O comparsa respondeu enviando comprovantes de pagamento.
Durante a Operação Dakovo, Índio não havia sido identificado, mas as conversas e o número usado por ele foram remetidos pelos agentes da Bahia para a Delegacia de Repressão a Entorpecentes da PF do Rio, que pediu uma nova quebra de sigilo.
Conversas com políticos
Ao analisarem o conteúdo da conta de Índio — identificado como Gabriel Dias de Oliveira, chefe do tráfico da Favela do Lixão, em Duque de Caxias —, os agentes encontraram um novo flanco de apuração: conversas entre o traficante e personagens do cenário político fluminense, como o deputado TH Joias e o ex-secretário Carracena, revelaram tentativas da facção de influenciar o policiamento ostensivo, pagamentos de propina, um pedido de resgate de carros roubados e até um encontro presencial entre Índio e Gutemberg de Paula Fonseca, secretário de Defesa do Consumidor, para tratar de “cobertura política”.
Gutemberg nega que o encontro tenha ocorrido; já Carracena confirmou, em depoimento à PF, que ouviu de Gutemberg que a reunião teria acontecido.
Para a PF, TH Joias era uma espécie de braço político da facção, defendendo os interesses dos criminosos junto aos órgãos do estado.
Segundo um relatório da investigação, o novo esquema criminoso “evidencia uma profunda infiltração no sistema político e na administração pública”. Em setembro passado, os agentes federais foram novamente às ruas na Operação Zargun e prenderam Índio, TH e Carracena.
Mas as investigações ainda parecem longe do fim: atualmente, os agentes analisam o material apreendido com os presos e tentam avançar sobre a conexão entre o CV e seus contatos no poder público.
Tribuna Livre, com informações da Polícia Rodoviária Federal (PRF)







