13/09/2025

As cidades que se inspiram em plantações de arroz para evitar enchentes

Os terraços de produção de arroz são usados há milhares de anos em muitos países asiáticos, como a China, Japão, Tailândia, Vietnã e as Filipinas - (crédito: Getty Images)

Arquitetos asiáticos estão buscando inspiração nos terraços de arroz e em outras tradições agrícolas para ajudar a reduzir enchentes e alagamentos.

Um dos momentos mais memoráveis vividos por Kotchakorn Voraakhom quando era criança em Bangkok, na Tailândia, nos anos 1980, foi o dia em que ela brincou nas águas da enchente em frente à sua casa, em um pequeno barco construído pelo seu pai.

“Eu fiquei tão feliz por não precisar ir à escola porque não sabíamos como chegar lá”, relembra a arquiteta paisagista, moradora na capital tailandesa.

Mas, cerca de 30 anos depois, as cheias deixaram de ser uma alegre recordação da infância e se tornaram uma experiência devastadora.

Em 2011, Voraakhom e sua família, entre milhões de outras pessoas em Bangkok, foram desalojados, quando fortes chuvas inundaram grande parte da Tailândia e as águas chegaram até a capital.

Foram as maiores enchentes do país em décadas – um desastre nacional que durou mais de três meses e matou mais de 800 pessoas. Os cientistas relacionaram o aumento das chuvas e as enchentes às emissões de gases do efeito estufa, causadas pelas atividades humanas.

O desastre abalou Voraakhom profundamente. Ela acreditou que aquela seria a hora de usar seus conhecimentos para fazer algo pela sua cidade natal.

Ela abriu seu próprio escritório de arquitetura e paisagismo, chamado Landprocess. E, na última década, Voraakhom projetou parques, telhados verdes e espaços públicos na baixa altitude da cidade, para ajudar as pessoas a aumentar sua resistência às enchentes.

Seu projeto mais curioso até agora talvez seja o enorme teto de uma universidade tomada pela natureza, inspirado nos terraços de produção de arroz – uma forma de agricultura tradicional, praticada na Ásia há cerca de 5 mil anos.

A Tailândia, a China e outros países asiáticos são vulneráveis aos impactos climáticos.

Neste ano, o número de enchentes significativas na China foi o mais alto desde o início dos registros. Já os agricultores tailandeses estão expostos ao aumento do calor, das secas e das cheias, causado pelas mudanças climáticas.

O teto da universidade, projetado por Voraakhom, faz parte de uma tendência maior. Os arquitetos asiáticos estão buscando inspiração nos terraços de arroz e em outras tradições agrícolas da região, para ajudar as comunidades urbanas a reduzir enchentes e alagamentos.

Os exemplos incluem parques alagáveis em cidades chinesas até casas no Vietnã com telhados inspirados em campos de arroz.

Para Voraakhom, “muitas das respostas para o futuro das mudanças climáticas, na verdade, estão no passado.”

Na Universidade Thammasat, na zona norte de Bangkok, pequenos campos de arroz em diferentes níveis caem em cascata do topo do edifício, ao longo do telhado verde projetado por Voraakhom. A estrutura permite que o campus colete água da chuva e cultive alimentos.

Existem quatro tanques em torno do edifício para capturar e reter o fluxo de água. Nos dias secos, esta água é bombeada de volta para cima, utilizando a energia limpa gerada pelos painéis solares instalados no teto. A água é então usada para irrigar os campos de arroz no telhado.

Construído em 2019, o local formava, na época, a maior fazenda urbana em telhados do continente asiático. Dos seus 22 mil metros quadrados, 7 mil foram dedicados à agricultura orgânica.

Em comparação com um projeto feito de concreto, o telhado verde pode reduzir a velocidade de escoamento da água da chuva em cerca de 20 vezes, segundo as estimativas de Voraakhom. O fluxo excessivo de água da chuva para a terra é um dos grandes problemas de Bangkok.

O telhado verde também pode reduzir a temperatura dentro do edifico em 2 a 4 °C durante os quentes verões que marcam a capital tailandesa, segundo a arquiteta.

Os terraços são formados por campos de arroz em diferentes níveis. Eles são normalmente criados por pequenos agricultores ao longo das encostas de morros e montanhas, para maximizar o uso da terra.

Os terraços de arroz podem ser encontrados em muitos países asiáticos, como a China, Japão, Tailândia, Vietnã e Filipinas. Sua origem pode ser traçada até a bacia do rio Yangtze, na China, mais de 5 mil anos atrás.

Embora seus formatos e tamanhos possam variar, todos os terraços de arroz são construídos acompanhando as linhas de contorno naturais. Isso significa que cada camada possui a mesma elevação sobre o nível do mar.

Este feito permite a coleta e retenção da água da chuva, que é utilizada para irrigar o solo e os campos agrícolas.

Alguns terraços de arroz, como os da etnia Han, no sul da China, ficam nas margens dos rios. Isso permite que o solo escalonado reduza, desacelere e purifique o excesso de água da chuva que corre do topo da montanha em direção ao vale.

Toda esta tecnologia nativa foi transmitida ao longo de gerações de pequenos agricultores. Agora, ela pode trazer imensos benefícios para as cidades asiáticas que lutam para enfrentar as tempestades, segundo o professor de arquitetura e paisagismo Yu Kongjian, da Universidade de Pequim, na China. Ele é o responsável pelo conceito chinês de “cidades-esponja”.

Como ocorre em muitas outras partes da Ásia, o clima das cidades chinesas é de monções, caracterizado por verões chuvosos e invernos mais secos. Elas podem receber até um terço das suas chuvas anuais (300-500 mm) em um único dia, segundo Yu.

O professor defende que, devido a estas fortes precipitações, as medidas de controle de enchentes precisam fazer uso dos modos locais de adaptação às cheias, que foram testados e comprovados por milhares de anos.

Os terraços de arroz são um dos pilares da teoria das cidades-esponja, desenvolvida por Yu. O arquiteto aconselha as cidades a recorrer ao solo e às áreas verdes – sem aço, nem cimento – para solucionar os problemas de excesso de chuvas e enchentes.

Yu destaca que a água da chuva precisa ser absorvida e retida na fonte. Seu fluxo deve ser desacelerado e dirigido até o seu destino. E os terraços de arroz tratam de reduzir os fluxos de água na fonte.

Desde 1997, Yu já desenvolveu projetos para mais de 500 “cidades-esponja” em toda a China, usando a formação de terraços. E os estudos demonstraram que alguns deles estão trazendo resultados impressionantes.

Um exemplo é o parque Yanweizhou, em Jinhua, no leste da China – a cidade natal de Yu. Inaugurado em 2014, o parque inclui um banco em forma de terraço de arroz, plantado com gramíneas que podem se adaptar ao ambiente subaquático.

Esta função de “esponja” consegue reduzir o nível máximo de cheia anual do parque em até 63% em comparação com um parque de concreto, segundo um estudo realizado em 2019.

Estes projetos também podem filtrar a água das enchentes, que é frequentemente contaminada por esgotos, produtos químicos e outros poluentes.

Outro projeto de Yu – o parque Houtan de Xangai, no leste da China – fica situado em um terreno que, antes, era altamente poluído, por ter sido usado como aterro de resíduos industriais. O parque também utiliza o conceito de formação de terraços de Yu.

Desde sua inauguração, em 2009, o parque é capaz de purificar 800 toneladas de água altamente poluída por hectare, todos os dias, segundo relatou Yu em um estudo de 2019, depois de diversos testes realizados no local.

Agora, segundo o estudo, a água do parque atende ao padrão chinês de terceira categoria – água suficientemente limpa para os peixes.

Outros países

A tendência de formação de terraços já se espalhou para o Vietnã.

Doan Thanh Ha é o fundador e principal arquiteto do escritório H&P Architects, com sede em Hanói. Ele combina a sabedoria da agricultura tradicional com seus projetos de construção ecológica desde 2009.

Seus trabalhos incluem uma casa de três pavimentos com teto inspirado em terraços de arroz, onde seu morador pode cultivar produtos agrícolas.

Ele também criou uma casa flutuante de baixo custo, feita de bambu, que pode ser adaptada para enfrentar enchentes e o aumento do nível do mar em residências mais pobres. Nas Filipinas, as casas de bambu flutuantes já estão ajudando os moradores locais a enfrentar enchentes, furacões e o aumento do nível das águas.

Para Ha, os campos de arroz em terraços do Vietnã são um exemplo de conhecimento local que transmite profunda compreensão das leis naturais, particularmente da água.

Segundo ele, este tipo de conhecimento local também pode desempenhar “papel significativo” para ajudar as comunidades modernas a preservar a biodiversidade e os ecossistemas, enfrentando as mudanças climáticas.

Yu é da mesma opinião. Com o aquecimento global trazendo chuvas mais fortes para o continente europeu, por exemplo, o uso dos terraços de arroz poderia ser levado até para cidades como Londres, segundo ele.

“Qualquer encosta ou superfície inclinada pode ser transformada em terraços ocupados pela natureza, para absorver a água da chuva”, destaca ele.

Toques de despertar

Muitas das cidades asiáticas são vastas e densamente povoadas. A dupla ameaça causada pelas mudanças climáticas e por décadas de urbanização desenfreada fez com que elas começassem a repensar suas estratégias de gestão da água da chuva nos últimos anos.

Em muitos lugares, as chuvas das monções estão ficando mais intensas, os furacões estão ficando mais destrutivos e o nível do mar está subindo. Algumas cidades estão afundando rapidamente, devido à perda do lençol freático e ao peso das construções, como Jacarta, na Indonésia, e Ho Chi Minh, no Vietnã.

Em muitas destas cidades, a água da chuva não consegue penetrar nas superfícies pavimentadas. Por isso, o solo não tem a chance de absorver e armazenar a água da chuva para colaborar com o sistema natural do ciclo da água, explica a professora de design e planejamento urbano Lei Yanhui, da Universidade Xi’an Jiaotong-Liverpool em Suzhou, na China.

Além disso, os sistemas de drenagem de algumas cidades não separam a água da chuva do esgoto, ficando sujeitos a sobrecargas e transbordamentos durante as tempestades, segundo Lei. A contaminação da água pelo esgoto é um problema que também ocorre no Reino Unido e no Brasil.

No verão de 2012, um ano depois das fortes cheias que atingiram a Tailândia, imensos volumes de chuva atingiram Pequim, resultando em um recorde de 460 mm de chuva em apenas 18 horas. O evento causou 79 mortes e prejuízos de cerca de US$ 1,6 bilhão (cerca de R$ 9 bilhões).

Mas a enchente de 2012 em Pequim trouxe transformações.

“Depois do evento, a China começou a dedicar mais atenção à drenagem da água da chuva [em áreas urbanas] e à prevenção de enchentes”, afirma a professora de controle das cheias urbanas Shao Zhiyu, da Universidade de Chongqing, na China.

Em 2014, a China adotou oficialmente o conceito de “cidades-esponja” como programa nacional. No ano seguinte, 16 cidades foram escolhidas para servir de “pilotos” de teste do modelo.

Chongqing foi uma delas – uma megacidade montanhosa no centro da China, com 32 milhões de habitantes.

“Costumávamos pensar que deveríamos controlar as enchentes”, explica Shao. “Agora, percebemos que as enchentes não podem ser controladas e [precisamos] nos adaptar a elas, pois o poder da natureza é grande demais.”

Shao tem formação em engenharia. Ela participou de uma equipe que recebeu a tarefa de projetar uma nova área “esponjosa” nas margens do rio em Chongqing. A área inclui terraços repletos de plantas nas encostas.

“O projeto pretendia inicialmente purificar a água da chuva antes que ela fluísse para o rio”, ela conta, “mas ele também consegue reduzir o nível de pico das enchentes, exceto em chuvas excepcionais.”

Para Voraakhom, em Bangkok, os terraços de arroz são uma lembrança do estilo de vida dos seus ancestrais – simples, mas adaptável. Afinal, eles viveram em harmonia com a água e as mudanças sazonais por milênios.

A chuva costumava ser bem recebida pelos tailandeses. Ela alimenta a terra e permite o cultivo do arroz.

“Mas estamos transformando a melhor região agrícola do mundo na pior cidade que você pode imaginar, que é Bangkok”, segundo a arquiteta.

Com 11 milhões de habitantes e situada a 1,5 metro acima do nível do mar, a capital tailandesa tem apenas sete metros quadrados de áreas verdes públicas por habitante, um dos níveis mais baixos da Ásia.

Bangkok passou 30 anos sem construir um único parque público. Apenas em 2017, foi inaugurado o Parque Centenário Chulalongkorn, com 4,5 hectares – outro projeto de Voraakhom, criado para reter as enchentes.

O parque foi construído em um ângulo de três graus, que permite canalizar a água das tempestades do seu ponto mais alto até um tanque de retenção. Ao todo, ele é capaz de reter 4,5 milhões de litros de água – o equivalente a cerca de uma vez e meia a capacidade de uma piscina olímpica.

Tribuna Livre, com informações da BBC News

Deixe um comentário

Leia também
Balas que mataram Charlie Kirk tinham referências 'antifascistas': o que se sabe
Balas que mataram Charlie Kirk tinham referências 'antifascistas': o que se sabe
Português cai em golpe amoroso e é condenado a 6 anos de prisão
Português cai em golpe amoroso e é condenado a 6 anos de prisão
Decisão de atacar o Hamas no Catar foi de Netanyahu, 'não minha', diz Trump
Decisão de atacar o Hamas no Catar foi de Netanyahu, 'não minha', diz Trump
Exército nepalês patrulha ruas da capital após protestos que provocaram renúncia do primeiro-ministro
Exército nepalês patrulha ruas da capital após protestos que provocaram renúncia do primeiro-ministro
Protesto em apoio a grupo pró-palestino proscrito deixa quase 900 detidos em Londres
Protesto em apoio a grupo pró-palestino proscrito deixa quase 900 detidos em Londres
EUA libertará sul-coreanos detidos em operação anti-imigração
EUA libertará sul-coreanos detidos em operação anti-imigração
Criança é atacada por tubarão enquanto nadava em águas rasas
Criança é atacada por tubarão enquanto nadava em águas rasas
Sobe para 16 o número de mortos em acidente no Elevador Glória, tradicional bondinho de Lisboa
Sobe para 16 o número de mortos em acidente no Elevador Glória, tradicional bondinho de Lisboa
Trump afirma que 11 "narcotraficantes" morreram em ataque contra barco da Venezuela
Trump afirma que 11 "narcotraficantes" morreram em ataque contra barco da Venezuela
Elevador da Glória: histórico bondinho em Portugal descarrilha e deixa 3 mortos
Elevador da Glória: histórico bondinho em Portugal descarrilha e deixa 3 mortos
Tesouro da Argentina anuncia intervenção no câmbio para estabilizar peso após denúncias sobre irmã de Milei
Tesouro da Argentina anuncia intervenção no câmbio para estabilizar peso após denúncias sobre irmã de Milei
Ataque da Ucrânia obriga mais de 300 pessoas a fugirem de casa na Rússia
Ataque da Ucrânia obriga mais de 300 pessoas a fugirem de casa na Rússia

GDF aprova regimento interno da Câmara Setorial da Fruticultura

Colegiado terá papel estratégico na formulação de políticas e ações voltadas à competitividade e expansão da fruticultura brasiliense O Governo do Distrito Federal (GDF), por meio da Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (Seagri-DF), publicou nesta segunda-feira (8) a Portaria nº 331/2025, que aprova o regimento interno da Câmara

Leia mais...

A sua privacidade é importante para o Tribuna Livre Brasil. Nossa política de privacidade visa garantir a transparência e segurança no tratamento de seus dados pessoais.