Uma menina estuprada a cada seis minutos e mulheres assassinadas em casa, Anuário da Segurança escancara a face mais cruel da violência de gênero no Brasil
O Brasil registrou, em 2024, os números mais altos da série histórica de estupros e feminicídios desde o início do monitoramento pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). De acordo com o Anuário da Segurança, divulgado na semana passada, o país contabilizou 87.545 vítimas de estupro ou estupro de vulnerável no último ano, o equivalente a uma ocorrência a cada seis minutos. Entre as vítimas, 75% eram meninas de até 14 anos.
O estudo também aponta aumento nos feminicídios: foram 1.492 mulheres assassinadas por serem mulheres, o maior número desde a criação da tipificação penal, em 2015. A maioria das vítimas era negra (64%), tinha entre 18 e 44 anos (70%) e foi morta dentro de casa (64%), por companheiros ou ex-companheiros.
A alta de cerca de 1% nos dois indicadores em relação a 2023 pode parecer tímida, mas revela um padrão persistente de violência de gênero e escancara o fracasso das políticas públicas em proteger meninas e mulheres, sobretudo negras. “A cor da pele e o CEP seguem sendo determinantes para a sobrevivência dessas mulheres”, afirma Daiana Sousa, advogada e pesquisadora em direito antidiscriminatório.
Segundo ela, medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha ainda têm eficácia limitada, especialmente quando não há articulação entre o Judiciário, a segurança pública e a assistência social. “É urgente que medidas como monitoramento eletrônico de agressores e dispositivos de alerta, como o aplicativo Viva Flor, sejam ampliadas. Caso contrário, continuaremos colecionando estatísticas trágicas.”
Outro ponto crítico está no tratamento judicial aos casos de estupro de vulnerável. Embora o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente já contemplem penas rígidas, a aplicação prática da lei ainda sofre com resistências e interpretações equivocadas, como aponta a advogada. “Há juízes que relativizam a violência quando ela ocorre no contexto familiar ou entre pessoas próximas. Isso precisa mudar com formação institucional e protocolos claros de escuta protegida.”
Subnotificação
A subnotificação é outro obstáculo relevante. De acordo com especialistas, muitos crimes contra crianças e adolescentes nem sequer chegam ao sistema de Justiça, especialmente quando o agressor é alguém próximo. “A criança não tem discernimento nem ferramentas para pedir ajuda. Por isso, a responsabilidade precisa recair sobre a sociedade, os profissionais da saúde e da educação e o próprio Estado, que precisa agir preventivamente”, explica Jéssica Marques, advogada especializada em violência doméstica.
O padrão de feminicídios com foco em mulheres negras, jovens e assassinadas dentro de casa, também exige uma resposta urgente. Para Daiana Sousa, o Judiciário precisa adotar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, e incorporar o conceito de racismo estrutural às decisões. “A neutralidade aparente nas sentenças esconde desigualdades profundas. Se o Estado não reconhecer isso, seguirá sendo cúmplice”, diz.
Jéssica Marques reforça que o aumento das penas, por si só, não é suficiente. “É preciso ir além do punitivismo. A prevenção da reincidência passa por medidas como grupos reflexivos para agressores, acolhimento efetivo das vítimas e articulação com a rede de proteção. A estrutura já existe, o que falta é vontade política e investimento.”
Tribuna Livre, com informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)