12/07/2025

Como Cuba, que já foi país ‘ateu’, agora vê crescimento de evangélicos

Fachada da Igreja Fuente de Vida em Havana; antes atípica, presença evangélica já pode ser percebida nas ruas de Cuba - (crédito: Reprodução/Facebook)

Apesar de não haver dados oficiais sobre aumento dos evangélicos, especialistas dizem que a presença desses religiosos está crescendo na ilha.

O relógio marca 19h20 em Havana, capital de Cuba.

Em frente a um prédio que estampa uma foto de cerca de um metro de altura do revolucionário Ernesto Che Guevara, na Plaza del Cristo, no extremo oeste da cidade, um grupo de cubanos, em sua maioria jovens, reúne-se para fazer algo que era há até pouco tempo algo atípico na ilha: orar na rua.

Com as mãos para cima, o grupo pede as bênçãos de Jesus por dias de prosperidade e força para uma luta do bem contra o mal. É um dos sinais mais visíveis de um fenômeno recente na ilha.

Cuba, que já foi na prática um “Estado ateu”, baseado na “concepção materialista científica do Universo”, agora vê o crescimento de evangélicos, em meio à maior crise econômica do país dos últimos 30 anos.

Embora não existam dados oficiais sobre o número de evangélicos no país, o consenso de especialistas aponta no mesmo sentido do que agora se vê nas ruas de Havana.

“Sem dúvida temos visto um aumento [dos evangélicos em Cuba] nos últimos cinco anos”, afirma o cubano Pedro Alvarez Sifontes, mestre em Estudos Sociais e Filosóficos da Religião pela Universidade de Havana e pesquisador assistente no Centro de Pesquisa Psicológica e Sociológica.

Foi a crise de saúde pública compartilhada com o resto do mundo e o agravamento dos problemas econômicos particulares da ilha que fomentaram a adesão de milhares de cubanos, sobretudo jovens, às igrejas evangélicas, apontam entrevistados pela BBC News Brasil.

“Depois da pandemia, a crise levou muito mais pessoas a se aproximarem da fé e das igrejas”, diz o teólogo Eliecer Portal, evangélico batista que trabalha como guia turístico no interior do país.

“Momentos de crise chamam as pessoas à fé, principalmente quando sentem que suas vidas estão em jogo.”

Estado ‘ateu’ com herança católica

Cuba não é uma sociedade estranha à religião.

Colonizada por espanhóis, o país tem uma vasta herança católica, com milhares de igrejas e praças com nomes de santo espalhadas pelas cidades.

Outras religiões de matriz africana, levadas pelos escravizados, também fizeram parte da vida cubana durante séculos.

Porém, após a revolução socialista de 1959, liderada por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, o país caminhou em direção à interpretação soviética da doutrina marxista que distanciava o Estado — e, portanto, a população — da religião.

Assim, a Constituição promulgada em 1976 previa que Cuba seria um Estado laico, sem religião predominante e oficial, e baseado na “concepção materialista científica do Universo”.

“A Constituição proclama a liberdade religiosa e o direito de praticar qualquer religião que se queira. Mas, depois disso, havia um artigo que dizia que o Estado era obrigado a propor e realizar todo o trabalho educacional baseado na concepção científica marxista-leninista”, diz Pedro Sifontes.

Segundo ele, além do apelo constitucional, foram criadas normas ateístas como parte intrínseca da educação e da cultura cubanas.

“Por exemplo, no ensino superior, foi criada uma disciplina chamada Comunismo Científico. Essa disciplina recriou tudo o que era ateísmo científico e promulgou um positivismo neomarxista, o que não era a realidade da teoria de [Karl] Marx e [Friedrich] Engels”, diz, em referência aos ideólogos do comunismo.

À época, também foram criadas regulamentações que limitavam o acesso a crenças religiosas e a diferentes facetas da vida cotidiana.

“Por exemplo, pessoas religiosas não podiam cursar certas áreas, como jornalismo; não podiam acessar cargos governamentais diretamente. Se você declarasse sua religião ou filiação religiosa, não teria acesso a cargos de liderança no governo”, diz Sifontes.

“Todos eram questionados sobre sua ascendência religiosa, para tudo. Para ser membro do Partido Comunista da Juventude, você também tinha que declarar seu status ateu, sua posição ateia. Se não, você não era admitido. E isso, claro, para nós, cria toda uma concepção de um Estado ateu.”

Apesar disso, a religiosidade continuou presente no cotidiano dos cubanos, que professavam suas crenças em pequenas igrejas ou residências.

“O povo cubano nunca deixou de ser religioso. A Revolução, sabiamente, qualificou a santeria [uma religião de matriz africana, praticada em Cuba] de folclore, o que a livrou de preconceitos e perseguições”, afirma Frei Betto, escritor e teólogo.

“Fidel me disse que a Virgem do Cobre não é padroeira apenas dos católicos cubanos, mas de toda a nação. Nenhum país do continente americano recebeu tantas visitas de papas quanto Cuba — sendo quatro, considerando que Francisco esteve lá duas vezes.”

A aproximação do regime de Castro com a Igreja Católica, a partir da queda da União Soviética, abriu espaço para as instituições religiosas na “maior das Antilhas” — fenômeno celebrado por alguns como uma aproximação do regime ao liberalismo e criticado por outros como uma rendição de idealismo de Karl Marx à Igreja.

Segundo Betto, “o Estado e o Partido comunista de Cuba eram oficialmente ateus até mudanças operadas na década de 1990”, embora o governo revolucionário cubano sempre tenha convivido bem com todas as denominações religiosas — com exceção da Igreja Católica, que, no início, se opôs ao regime comunista.

Após a Revolução, o governo cubano chegou a expulsar padres e nacionalizar escolas e meios de comunicação católicos. Em 1961, inclusive, Fidel Castro declarou a Igreja Católica como um dos agentes contrarrevolucionários do país.

A tensa relação começou a arrefecer a partir de meados da década de 1990, intensificada com a visita do papa João Paulo 2º em janeiro de 1998, quando foi recebido com cerimônias públicas.

Depois, as visitas do papa Francisco consolidaram a aproximação entre a Igreja Católica e o governo cubano.

“Quando convenci Fidel do equívoco de não dialogar com os bispos católicos e da importância de erradicar o caráter ateu da Constituição e do estatuto do Partido Comunista, houve desconfiança de ambos lados no início do diálogo”, diz Frei Betto.

“Com a publicação do livro Fidel e a religião, as relações melhoraram e, hoje, o Estado cubano e Igreja Católica convivem com harmonia”, avalia, referindo-se ao livro de sua autoria para o qual conversou com Fidel Castro sobre religião por 23 horas.

Entretanto, segundo Pedro Sifontes, ocasionalmente ainda há tensões com membros da Igreja Católica.

“Especialmente devido às ações de alguns padres que se posicionam dissidentes contra o governo cubano. Eles são uma pequena minoria, mas altamente visíveis nas redes sociais”, diz.

Há, também, críticas da Igreja Católica ao governo.

“A Igreja em Cuba se autoproclamou a ‘consciência crítica da sociedade cubana’ e expressa periodicamente sua opinião por meio de cartas pastorais da Conferência dos Bispos Católicos de Cuba — a maioria das quais, em maior ou menor grau, bastante críticas ao governo cubano”, afirma o pesquisador.

A Constituição mais recente do país, aprovada em 2019, reconhece a garantia da liberdade religiosa, seja ela qual for.

Tribuna Livre, com informações da BBC News

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