15/09/2025

Fábricas clandestinas produzem de fuzis a munição e viram a nova aposta de criminosos para abastecer facções com armas

“Ghost guns”: Armas de produção artesanal apreendidas pela PF em Santa Bárbara D’Oeste que são mais difíceis de rastrear — Foto: Divulgação/PM-SP

Especialistas apontam que fenômeno representa uma mudança significativa na forma como esses produtos circulam no mercado ilegal e chegam até as áreas dominadas pelo crime

A Polícia Federal (PF) se surpreendeu ao entrar em um galpão industrial na cidade de Santa Bárbara D’Oeste, no interior paulista, em 21 de agosto. No espaço de 150 metros quadrados estava uma dezena de máquinas de última geração utilizadas para a usinagem de metais, que chegam a custar milhões de reais cada. Seria um equipamento até trivial caso se tratasse, de fato, de uma produção de peças aeronáuticas, como indicava o logotipo na fachada. A investigação, no entanto, aponta que ali funcionava uma fábrica clandestina de fuzis do tipo AR-15.

Um dia depois da apreensão, a 120 quilômetros de Santa Bárbara, outra surpresa. Em um sítio em São Roque, também em São Paulo, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público estadual encontrou uma centena de armamentos, boa parte irregular, no que é descrito por promotores como um “arsenal de guerra” avaliado em pelo menos R$ 1 milhão. No local, também funcionava uma fábrica de munição.

Embora a sofisticação do crime organizado não seja novidade, a industrialização dos fornecedores de armamento para as facções, mesmo que em pequena escala, é um fenômeno recente. Estudiosos que acompanham a história do tráfico de armas no Brasil afirmam que os últimos achados representam uma mudança significativa na forma como esses produtos circulam no mercado ilegal e chegam até as áreas dominadas pelo crime.

Horários suspeitos Nos arredores de Campinas (SP), em agosto, agentes da PF seguiram por dez dias o operador de máquinas Janderson Azevedo, na investigação que levou à “fábrica” de Santa Bárbara D’Oeste. Foi o horário de trabalho do suspeito que chamou a atenção. Aos fins de semana, inclusive durante a madrugada, ele entrava e saía de um galpão carregando caixas, para depois levá-las a outro endereço no município vizinho de Americana.

Em 21 de agosto, por volta de 17h, Janderson saiu de carro da fábrica até o imóvel em Americana, onde encontrou Anderson Gomes, um companheiro de trabalho. Ao deixar o local, a dupla foi abordada pela Polícia Militar, que encontrou fuzis, munição e peças de armas de fogo com os dois. Ao todo, eram 40 unidades de AR-15, todas apreendidas. Ambos acabaram presos.

A suspeita é que os itens seriam destinados a facções que atuam em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em nota, a Polícia Civil fluminense informa que atua “contundentemente no combate ao tráfico de armas”.

 Já a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que desde 2023 foram apreendidos mais de 600 fuzis e que também intensificou o combate ao tráfico de armas. Pouco depois, os equipamentos que chegam a custar mais de R$ 1 milhão foram localizados em Santa Bárbara.

 — Estamos falando de máquinas digitais, capazes de fazer praticamente o fuzil inteiro no Brasil, sem depender de peças importadas — diz Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz.

Na fachada do imóvel, o logotipo era da Kondor Fly, fundada em maio de 2024 pelo piloto Gabriel Carvalho Belchior. Até o momento, os depoimentos colhidos pela PF indicam que os equipamentos teriam sido arrendados por uma empresa de Americana (SP), a BSW Usinagem. A Kondor pagava R$ 69 mil por mês pela manutenção e o uso do material. Já o aluguel do galpão custava R$ 6,5 mil.

O dono da BSW alegou ao ser ouvido que atua há mais de 20 anos na região de Campinas. Segundo ele, os responsáveis pela Kondor informaram que usariam as máquinas para produzir “bombas hidráulicas e peças aeroespaciais”. O empresário disse ter mantido contato com Janderson Azevedo, Belchior e outros três funcionários que trabalhavam no endereço.

Anderson Gomes, o outro homem preso com Janderson, seria o responsável pela programação das máquinas para a fabricação das peças. Em depoimento, permaneceu em silêncio quando questionado sobre a finalidade dos produtos produzidos na Kondor. A mesma postura foi adotada por Janderson.

Os dois também não responderam quando a polícia questionou se conheciam o dono da empresa, Gabriel Belchior. Por sugestão do advogado, a seguinte pergunta — esta respondida — foi incluída ao final da oitiva: “Mais alguém, além (da dupla), sabia que eles fabricavam os materiais apreendidos na fábrica?”. Ambos negaram. Eles permanecem atrás das grades enquanto as investigações avançam.

Procurada várias vezes pelo GLOBO, a defesa de Anderson Gomes e Janderson Azevedo não retornou aos contatos. Já o advogado Vincent Olivier, que representa Belchior, afirmou que o cliente não possui antecedentes criminais e “nega envolvimento com qualquer prática ilícita”. Também disse que o piloto “permanece colaborando com a investigação”. Advogado da BSW Usinagem, Dinael Machado Júnior informou que a empresa é “idônea e figurou na dinâmica negocial apenas como arrendadora do espaço e do maquinário”.

Flexibilização dos CACs Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Roberto Uchôa conta que um fuzil pode custar até R$ 70 mil no mercado paralelo. Historicamente, explica, as armas de cano longo usadas por facções no país chegam aos criminosos pelas rotas de tráfico de cocaína e maconha. O cenário começou a mudar com a flexibilização das regras para obtenção dos certificados de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC) no governo de Jair Bolsonaro (PL), que teria facilitado a aquisição de armas e, consequentemente, o desvio para as quadrilhas.

Em 2018, o Brasil tinha 117 mil certificados de CACs. Agora, o número aproxima-se de 1 milhão. Parte das regras afrouxadas para obtenção do documento foi revogada no governo Lula, e a PF assumiu a fiscalização, antes feita pelo Exército, sob a promessa de reduzir irregularidades.

O achado na fábrica de Santa Bárbara representa um salto na dinâmica do tráfico de armas e eleva a preocupação com as chamadas “ghost guns”, de produção “artesanal” e mais difíceis de serem rastreadas. O estado do Rio, onde 732 fuzis foram retirados de circulação só no ano passado — o equivalente a dois por dia —, concentrou 43% das apreensões deste tipo de armamento no Brasil na última década. Segundo a Polícia Civil, metade dos itens apreendidos em 2024 era composta por fuzis falsificados, as “ghost guns”.

— O próprio Ronnie Lessa (assassino da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes) participava da montagem de fuzis, feita de maneira bem manual, com produção pequena e qualidade inferior das armas. No caso de Santa Bárbara, estamos falando de larga escala, com acabamento melhor, o que deixa a arma mais precisa e durável. As autoridades ainda estão olhando para a fronteira, mas a fabricação em larga escala agora acontece no Brasil — destaca Langeani, do Sou da Paz.

Uchôa completa:

— Isso demonstra que a demanda por fuzis continua alta. O controle do armamento tanto nos mercados legal quanto ilegal é essencial para a gente falar de segurança pública.

Outra modalidade que entrou no radar das polícias é a importação de itens desmontados que são posteriormente finalizados por armeiros já no Brasil. Também em agosto e no interior paulista, no Aeroporto de Viracopos, a Receita Federal apreendeu 1.100 partes de armamento ocultas em caixas de piscina e peças de cadeira de escritório encomendadas dos EUA.

Para tanto armamento, também é preciso balas. Uma investigação do Gaeco localizou, em São Roque, uma fábrica clandestina de munição. Em conjunto com a PM, os promotores cumpriram, em 22 de agosto, um mandado de busca e apreensão em endereços ligados ao engenheiro Wilson Guzzon, suspeito de fornecer armas para o PCC.

Guzzon é CAC e tinha 40 armas legalizadas. Mas cerca de uma centena de itens, entre revólveres, fuzis, pistolas e armas automáticas, além de acessórios como lunetas, estavam no sítio e em um endereço do engenheiro na capital. O arsenal é avaliado em pelo menos R$ 1 milhão.

 — A munição que havia ali pesava mais de 1 tonelada. Ele não agia como CAC. Achamos pólvora, espoleta, prensa, estojo, todo o maquinário usado para recarregar (munições usadas) e para produzir — destaca Helena Calado, promotora do Gaeco de Sorocaba.

Guzzon, porém, não foi localizado na ação. O caseiro do sítio, José Veríssimo Romão, foi flagrado com mais armas e munições irregulares, que, segundo ele, eram usadas para fazer a segurança da propriedade. Preso, ele obteve liberdade provisória no dia seguinte.

Os advogados que defendem o caseiro e o engenheiro alegam em nota que Guzzon é apenas um “colecionador de armas” e que os itens encontrados “são provenientes de acervos antigos”, herdados de seu pai e avô. “No tocante às especulações de envolvimento com o PCC, nosso cliente nega veemente tal fato”, pontuam.

Tribuna Livre, com informações da Polícia Federal (PF)

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