Documentos policiais detalham como domínio territorial de organizações criminosas no Rio, em São Paulo, Pernambuco e Mato Grosso bloqueiam trabalhos de órgãos públicos
Situação cotidiana em áreas conflagradas do Rio, o veto à atuação do poder público nos territórios dominados por facções se espalhou por outras regiões e vem impedindo a atuação de funcionários destacados para encerrar atividades clandestinas e cumprir funções de rotina. Relatórios de inteligência mostram a expansão do crime organizado em estados como Pernambuco, São Paulo e Mato Grosso.
Os documentos afirmam que investigações sobre condições precárias de trabalho deixaram de ser feitas, assim como operações que buscavam interromper serviços ilegais de telefonia e internet, que geram prejuízos para as concessionárias. Um episódio de interferência de uma rádio clandestina nas comunicações de pousos e decolagens no Aeroporto do Galeão foi deixado de lado porque os equipamentos ficavam em uma área dominada pelo Comando Vermelho.
Nesses relatórios produzidos pela Polícia Federal (PF), há uma série de orientações para os auditores fiscais não entrarem em determinadas regiões e alertas para a possibilidade de serem alvos de tiros. Em 4 de julho de 2025, por exemplo, foram apontados obstáculos para entrar em uma comunidade controlada pelo CV em Rocha Miranda, na Zona Norte carioca.
“Para a efetivação da diligência, seria necessário planejamento operacional cuidadoso, com reforço no efetivo empregado, tendo em vista a elevada possibilidade de confronto com facções criminosas”, concluiu a PF, citando também a presença de barricadas.
A Superintendência Regional do Trabalho no Rio afirmou que aciona a PF e conta com o suporte da Polícia Militar, da Polícia Civil e da Guarda Municipal sempre que um funcionário precisa de apoio à segurança. Disse ainda que elabora com a PM do Rio um plano de segurança integrado no estado. Procurada, a Polícia Federal não comentou.
Rotas de fuga
Para uma ação em Pilares, também na Zona Norte, a PF chegou a desenhar no mapa rotas de fuga para o caso de os fiscais do trabalho serem surpreendidos por homens armados, tanto da milícia, de um lado da via, quanto do Comando Vermelho, do outro.
A menos de dez quilômetros dali, na Mangueira, a PF apontou em 6 de outubro deste ano “probabilidade muito alta” de encontrar grupos armados e recomendou que os fiscais do trabalho abortassem a ação. “Não é possível realizar fiscalização no local sem colocar em grave risco a segurança da equipe”, concluiu a auditora do trabalho, em despacho produzido após alerta da PF.
A Secretaria de Segurança Pública do Rio afirmou que, ao ser acionada pela PF, a Polícia Militar “garante as condições de segurança necessárias para a realização das atividades de fiscalização”.
Ex-secretário Nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da Polícia Militar de SP, João Vicente da Silva Filho afirma que é preciso buscar alternativas para que o serviço básico chegue. Uma delas é negociar com líderes comunitários, para que eles conversem com os criminosos.
— É preciso que se elabore um plano completo de domínio do Estado (dessas regiões), mas até lá, são ações paliativas e negociação momentânea com lideranças para poder acessar essas regiões — pontuou.
O risco que antes parecia restrito a ações policiais agora atinge rotinas administrativas e fiscalizações técnicas, como de equipes destinadas a serviços de telefonia a internet. Em Pernambuco, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) relatou um “histórico de ameaças às equipes de fiscalização”. Em um dos casos, policiais civis à paisana foram a uma comunidade checar uma central ilegal.
Quando eles chegaram, em 8 de outubro, as caixas com cabos de fibra óptica já haviam sido cortadas, e nenhum suspeito foi identificado. A investigação foi encerrada sem que técnicos da Anatel conseguissem verificar a denúncia presencialmente. A agência informou que orienta as equipes a retornarem e solicitarem apoio das forças de segurança quando são impedidas de acessar determinadas áreas. Procurado, o governo de Pernambuco não se manifestou.
Em São Paulo, técnicos e fiscais federais relatam dificuldade para realizar atividades cotidianas em áreas sob domínio do Primeiro Comando da Capital (PCC). Relatórios internos mencionam episódios em que operações da Anatel e de outros órgãos foram suspensas por riscos à segurança.
A facção nasceu no sistema prisional paulista e hoje está presente em 25 estados. Em um dos documentos, a agência cita toques de recolher impostos pelo PCC em cidades do interior paulista, que inviabilizaram o conserto de orelhões e o atendimento de metas operacionais. A Secretaria de Segurança de São Paulo afirmou que faz operações em todas as regiões do estado e atua em parceria com autoridades federais para combater o crime organizado.
As barreiras impostas por facções afetam também concessionárias de serviços públicos. A Light, responsável pelo fornecimento de energia no Rio, relatou em ofício que técnicos não conseguem entrar em áreas sob controle do crime para investigar furtos de eletricidade. Procurada, a empresa disse que não tem restrições para fazer manutenção da rede elétrica, mas pontuou que em determinados locais não é “possível executar ações de cobrança, realizar cortes por inadimplência ou promover a regularização de ligações irregulares”.
Em muitos casos, denúncias e diligências são deixadas de lado por impossibilidade de chegar aos locais de risco. Em setembro do ano passado, por exemplo, uma auditoria fiscal do trabalho sugeriu o arquivamento de uma demanda depois que a PF apontou que o estabelecimento que seria fiscalizado se encontrava em uma comunidade dominada pela facção criminosa Terceiro Comando Puro.
Outro episódio ocorreu há seis meses, quando uma equipe da Anatel foi acionada para investigar uma rádio clandestina que interferia nas comunicações de pousos e decolagens no Galeão. O relatório de fiscalização revela que a operação foi suspensa por motivos de segurança: os técnicos não conseguiram acessar os equipamentos, instalados em área dominada pelo CV. Dias depois, uma nova equipe usou drone para localizar uma antena suspeita, sem conseguir confirmar a origem do sinal. A concessionária RIOGaleão disse que sempre coopera com “autoridades e órgãos competentes que conduzam investigações e operações para a segurança aeroviária”.
Um incidente com rádio clandestina foi verificado também em Cuiabá, onde duas emissoras funcionavam nas imediações da Penitenciária Central do Estado. “Os integrantes da facção estariam utilizando a rádio para se comunicar com presos, familiares e terceiros de fora”, diz um relatório. A situação foi revertida apenas com ordem judicial e apoio policial, apesar das ameaças à equipe. A Secretaria de Segurança estadual disse não haver “nenhum bairro onde as forças policiais estão impedidas de entrar para fazer o policiamento cotidiano de rondas e outras ações de segurança”.
Tentativa de reação
O avanço de zonas sob domínio do crime organizado e fora do alcance do Estado fez com que a segurança pública voltasse a ocupar o centro da agenda do governo federal. Após a megaoperação no Rio ter freado os ganhos de aprovação do presidente Lula, segundo pesquisas, o Executivo enviou ao Congresso o projeto Antifacção. Essa proposta passou por um vaivém de versões, conflagrando uma série de embates entre o Planalto e a oposição na disputa pelo protagonismo na aprovação do texto, que pode ser votado na Câmara nesta semana.
Um dos alvos da proposta, o CV atua em 70 dos 92 municípios do Rio e está presente em 20 estados do país, segundo documentos de inteligência. A facção disputa as principais rotas de tráfico de drogas com o PCC, que também está na mira do PL Antifacção, e explora outras atividades lucrativas, como o garimpo ilegal.
Diante da capilaridade das facções e do domínio completo exercido em alguns territórios, servidores e funcionários que prestam serviços no Rio pedem apoio da Superintendência da PF, que tem mapeado os riscos e avaliado o grau de perigo envolvido em cada prestação de serviços públicos básicos para a população.
Tribuna Livre, com informações da Polícia Federal










