03/10/2025

O sistema secreto que o Hamas usa para pagar salários do governo

O aumento dos casos de desnutrição persistem em Gaza, enquanto o preço dos alimentos dispara - (crédito: Anadolu via Getty Images)

Observadores estão surpresos com o fato do Hamas conseguir pagar funcionários enquanto Gaza está isolada e em meio a escombros

Após quase dois anos de guerra, a capacidade militar do Hamas está severamente enfraquecida e sua liderança política sob intensa pressão.

Ainda assim, ao longo do conflito, o Hamas conseguiu manter um sistema financeiro secreto em dinheiro capaz de pagar os salários dos 30 mil funcionários civis, totalizando cerca de US$ 7 milhões (R$ 37 milhões).

A BBC conversou com três funcionários que confirmaram ter recebido, na última semana, cerca de US$ 300 (R$ 1.625) cada. Acredita-se que eles estejam entre as dezenas de milhares de empregados que continuaram a receber, no máximo, 20% do salário que tinham antes da guerra, a cada dez semanas.

Em meio à inflação, esse salário simbólico — uma fração do valor integral — está gerando crescente insatisfação até mesmo entre apoiadores fiéis do movimento.

A grave escassez de alimentos — que as agências humanitárias atribuem às restrições impostas por Israel — e o aumento dos casos de desnutrição persistem em Gaza, onde, nas últimas semanas, um quilo de farinha chegou a custar US$ 80 (R$ 430).

Sem um sistema bancário em funcionamento em Gaza, até mesmo receber salário é um processo complexo e, em alguns casos, perigoso.

Israel identifica e ataca regularmente os distribuidores de pagamentos do Hamas, buscando enfraquecer a capacidade do grupo de governar.

Desde policiais a fiscais de impostos, os funcionários geralmente recebem mensagens criptografas em seus próprios celulares, ou de seus cônjuges, com instruções para ir até uma localização específica, em um horário determinado, para “encontrar um amigo para um chá”.

No ponto de encontro, o trabalhador é abordado por um homem — ou ocasionalmente por uma mulher — que discretamente entrega um envelope lacrado contendo o dinheiro e desaparece sem qualquer outra interação.

Um funcionário do Ministério de Assuntos Religiosos do Hamas, que preferiu não se identificar por questões de segurança, descreveu os perigos que envolvem buscar o pagamento.

“Toda vez que eu vou pegar meu salário, eu me despeço da minha esposa e dos meus filhos. Eu sei que posso não voltar”, afirma.

“Em várias ocasiões, os bombardeios de Israel atingiram pontos de distribuição de salários. Eu sobrevivi a um que teve como alvo um mercado movimentado na cidade de Gaza.”

Alla, cujo nome foi modificado para proteger sua identidade, é um professor contratado pelo governo administrado pelo Hamas, e é o único provedor para uma família de seis pessoas.

“Recebi 1.000 shekels (cerca de R$1.625) em notas velhas. Apenas 200 shekels podiam ser usados, o resto eu honestamente não sei o que fazer”, contou à BBC.

“Depois de dois meses e meio de fome, eles nos pagam em dinheiro esfarrapado. Muitas vezes sou obrigado a ir até os pontos de distribuição na esperança de conseguir alguma farinha para alimentar meus filhos. Às vezes eu consigo trazer um pouco para casa, mas na maioria das vezes eu fracasso.”

Em março, o exército israelense afirmou ter matado o chefe das finanças do Hamas, Ismail Barhoum, em um bombardeio ao Hospital Nasser, em Khan Younis. Eles era acusado de canalizar os recursos para o braço militar do grupo.

Ainda não está claro como o Hamas tem feito para continuar pagando os salários, diante da destruição de grande parte de sua infraestrutura administrativa e financeira.

Um funcionário do Hamas, que já ocupou cargos altos e conhece as operações financeiras do grupo, disse à BBC que a organização havia acumulado aproximadamente US$ 700 milhões em dinheiro vivo (R$ 3,7 bilhões) e centenas de milhões de shekels em túneis subterrâneos antes do ataque de 7 de outubro de 2023 no sul de Israel, que desencadeou a devastadora campanha militar israelense.

Esses recursos teriam sido supervisionados diretamente pelo líder do Hamas, Yahya Sinwar, e seu irmão Mohammed, ambos mortos pelas forças israelenses.

Raiva por benefícios a apoiadores do Hamas

O Hamas historicamente dependeu do financiamento proveniente de altas tarifas de importação e impostos cobrados da população em Gaza, além de receber milhões de dólares em apoio do Catar.

As Brigadas Al-Qassam, braço militar do Hamas, que opera por meio de um sistema financeiro separado, são financiadas principalmente pelo Irã.

Um alto funcionário da Irmandade Muçulmana, uma das organizações islâmicas mais influentes do mundo, sediada no Egito e banida do país, disse que cerca de 10% de seu orçamento também era direcionado para o Hamas.

Para gerar receita durante a guerra, o Hamas também continuou a cobrar impostos de comerciantes e vendeu grandes quantidades de cigarros a preços inflacionados, até 100 vezes mais do custo original. Antes da guerra, uma caixa com 20 cigarros custava US$ 5 (R$ 27) — agora aumentou para mais de US$ 170 (R$ 920).

Além dos pagamentos em dinheiro, o Hamas distribuiu cestas de alimentos para seus membros e suas famílias por meio de comitês de emergência locais, cuja liderança é frequentemente trocada devido aos ataques israelenses.

Isso alimentou a indignação pública, com muitos moradores de Gaza acusando o Hamas de distribuir ajuda apenas para seus apoiadores, excluindo o restante da população.

Israel acusou o Hamas de roubar a ajuda que entrou em Gaza durante o cessar-fogo no início do ano, algo que o Hamas nega. Contudo, fontes da BBC em Gaza afirmaram que quantidades significativas de ajuda foram tomadas pelo Hamas durante esse período.

Nisreen Khaled, viúva que ficou responsável por três filhos depois que seu marido morreu de um câncer há cinco anos, disse à BBC: “Quando a fome piorou, meus filhos choravam não apenas de dor, mas por ver nossos vizinhos ligados ao Hamas receberem cestas de alimentos e sacos de farinha.

“Eles não são a razão do nosso sofrimento? Por que eles não garantiram comida, água e medicamentos antes de se lançar na aventura do 7 de outubro?”

Tribuna Livre, com informações da BBC News

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