14/11/2024

Por que apuração dos votos da eleição dos EUA tem tudo para dar problema

Por que apuração dos votos da eleição dos EUA tem tudo para dar problema - (crédito: BBC Geral)

Observadores eleitorais e analistas políticos afirmam que, apesar dos esforços para melhorar o sistema eleitoral, condições da disputa podem degringolar para cenários de caos e violência.

Faltam mais de 24 horas para que as urnas comecem a fechar nas eleições americanas de 2024, mas já há uma expectativa de que o processo de contagem de votos que se seguirá seja lento e tumultuado. Ou seja, a apuração do resultado deve se arrastar por alguns dias.

É o que afirmam à BBC News Brasil observadores eleitorais que se dedicaram nas últimas semanas a avaliar e reforçar a integridade e segurança do sistema e que passarão os próximos dias fiscalizando o trabalho dos oficiais eleitorais.

Uma série de fatores explica o pouco otimismo destes profissionais em ver um processo eleitoral ordeiro e tranquilo: a falta de regras e padrões eleitorais nacionais, lentidão na apuração em Estados-chave, possível comportamento antidemocrático dos próprios candidatos, a chance de haver correntes de desinformação, e a possibilidade razoável de judicialização da disputa.

Além, é claro, do histórico de descrédito eleitoral de 2020, quando quase metade do país se convenceu de que as eleições tinham sido fraudadas, graças às infundadas declarações do então presidente Donald Trump e de seus aliados, derrotados naquele pleito.

O processo desaguou numa inédita invasão de apoiadores de Trump ao Capitólio no momento em que o Congresso certificava a vitória do democrata Joe Biden, em 6 de janeiro de 2021. Até por isso, há um clima de tensão e ansiedade em relação aos dias que sucedem o pleito, marcado para 5 de novembro.

Federalismo

Alguns dos problemas devem acontecer por características próprias à corrida eleitoral nos EUA. A eleição presidencial é indireta, via Colégio Eleitoral. Cada Estado tem um número de delegados eleitorais – semelhante ao número de congressistas que possuem.

Há, no total, 538 delegados e vence o candidato que conquistar 270 deles. Na maior parte dos Estados, quem vencer no voto popular leva todos os delegados que o Estado possui – Maine e Nebraska são exceções à essa regra.

Cada Estado conduz a votação e a apuração segundo suas próprias regras, em mais uma expressão do federalismo que define o país.

“Mas o que era historicamente uma força tem se mostrado a grande debilidade do sistema, a falta de uma autoridade central, pra racionalizar o processo”, afirmou um dos observadores eleitorais em campo nos EUA que conversou com a BBC News Brasil sob anonimato por não ter autorização de sua organização para comentar fora dos relatórios técnicos.

Ainda segundo esse profissional, que atua em eleições tanto na América do Norte quanto na América Latina, o que se vê nos EUA é uma discrepância muito grande entre procedimentos e padrões de conduta no processo eleitoral.

“Enquanto a Califórnia segue um padrão ouro, com enorme garantia de participação dos eleitores, e facilidades para que o voto seja concretizado com tranquilidade e conforto, a Carolina do Norte é o oposto, forçando seus eleitores a enfrentarem enormes filas pra votar e lembrando o que se vê de menos avançado em países latinos”, exemplifica o profissional.

Recontagem

São sete os Estados-pêndulos, aqueles que oscilam entre candidatos republicanos e democratas, nos quais a disputa se concentra em 2024. As pesquisas eleitorais sugerem um cenário extremamente acirrado entre a democrata Kamala Harris e o republicano Donald Trump pela Casa Branca.

Há meses, com algumas oscilações numéricas para um lado ou o outro, as sondagens têm mostrado ambos em virtual empate técnico. E isso deve também complicar a apuração.

“A contagem de votos pode levar de alguns dias a algumas semanas. Vai depender se teremos disputas muito apertadas em mais de um Estado. Quanto mais Estados com margens estreitas de vitória, mais deve demorar”, afirmou à BBC News Brasil David Carroll, diretor do Programa de Democracia do Carter Center, que trabalha diretamente nas eleições americanas.

Em alguns Estados decisivos, há recontagem obrigatória a depender do tamanho da diferença de votos entre um candidato e outro. No Arizona e na Pensilvânia, por exemplo, se a distância é igual ou menor a 0,5% dos votos totais no Estado, há recontagem obrigatória.

A Pensilvânia também permite pedidos de recontagem por seção eleitoral, desde que ao menos três eleitores apresentem a demanda com justificativa sobre suspeita de fraude. No Michigan, a lei determina nova contagem se a diferença for menor que dois mil votos. E no Wisconsin, a recontagem é automática se a margem de vitória for inferior a 0,25% dos votos.

Já Nevada, Carolina do Norte, Wisconsin e Geórgia também permitem que candidatos peçam recontagem sob algumas condições, como bancar os custos do processo e apresentar justificativa crível de fraude ou erro de processamento.

Na Geórgia, segundo Carroll, o Carter Center compõe com outras organizações uma comissão observadora que fará a auditoria da contagem de votos e não descarta uma recontagem total das cédulas do Estado, caso a disputa esteja muito apertada.

Em 2020, 5 milhões de votos foram contados manualmente ali – um processo que se arrastou por alguns dias. O então presidente Donald Trump pressionou pública e privadamente as autoridades locais por recontagens que pudessem contestar a apertadíssima vitória de Biden no Estado.

Tornou-se famoso um telefonema do republicano com o chefe do sistema eleitoral estadual em que ele pede que o servidor “encontre 11.780 votos” favoráveis a Trump, o que viraria o Estado para os republicanos. Por causa disso, ele enfrenta um processo criminal, ainda sem veredicto.

O risco do ‘já ganhei’

Observadores eleitorais notam que é altamente improvável que os dois maiores Estados decisivos, Geórgia (16 delegados) e Pensilvânia (19 delegados), tenham resultados já apurados na noite da eleição, dia 5/11. O esperado é que eles finalizem o trabalho na sexta-feira subsequente, 8/11.

“Mas é muito provável que um dos candidatos tente já clamar vitória na própria terça, diante de um quadro de vantagem parcial, e tente caracterizar uma possível virada, quando os números de Pensilvânia e Geórgia chegarem, como uma fraude eleitoral”, disse um dos observadores ouvidos pela reportagem.

Em 2020, algo parecido aconteceu. Na noite da eleição, diretamente da Casa Branca, o então presidente Donald Trump afirmou que era o vencedor do pleito. Mas a contabilização total dos votos e divulgação do resultado final, que contrariava o que disse Trump, só sairia cinco dias mais tarde.

“Segue sendo possível que Trump incentive seus apoiadores a semear o caos em torno dos processos de contagem e certificação de votos, tentando assim questionar os resultados e criar um pretexto para procedimentos extraordinários para resolver uma eleição disputada a seu favor” afirma Michael Wahid Hanna, chefe do programa sobre EUA da consultoria International Crisis Group.

Carroll também vislumbra a possibilidade de que algo parecido se repita agora. Para ele, o maior problema é que isso impulsione uma rede de informações falsas que levem as pessoas ao descrédito em relação ao processo eleitoral.

Outro risco é que a crença em um resultado falso inflame eleitores dispostos a cometer atos de violência. Uma pesquisa feita em abril passado pela PBS NewsHour/NPR/Marist indicou que um em cada cinco adultos nos EUA concordam com a ideia de que os americanos podem ter que recorrer à violência para colocar seu país de volta no rumo certo.

“Em Wisconsin e no Arizona temos notícias de que foram criados quase bunkers para proteger as áreas de apuração eleitoral”, disse um dos observadores ouvido pela reportagem.

O Arizona se tornou um dos pontos de maior tensão do país. Em Maricopa County, o condado que compreende a cidade de Phoenix e que se mostrou crucial em 2020, oficiais eleitorais passaram a receber ameaças constantes. Trump os acusou de fraudar o resultado, o que teria motivado ataques de seus apoiadores.

Há atualmente ao menos cinco processos por ameaças contra os trabalhadores eleitorais do Arizona junto ao Departamento de Justiça.

Em 2022, nas eleições legislativas de meio de mandato, como as a ameaças persistiam, o condado convocou seis vezes mais policiais do que em 2020 e protegeu o centro eleitoral com barricadas, cavalaria e até mesmo um helicóptero.

Todas essas precauções devem ser não só repetidas como superadas em 2024. No início do mês passado, um homem foi preso por disparar tiros contra o Comitê Democrata em Phoenix – ninguém se feriu.

Recentemente, o secretário de Estado do Arizona, a mais alta autoridade eleitoral local, admitiu que nos últimos quatro anos ele “quase sempre se apresentou em público usando um colete à prova de balas”.

E em outubro, caixas de correios com votos foram incendiadas e danificadas não só no Arizona, como em Massachussets, Washington e Oregon. Algumas centenas de votos foram perdidas e o caso segue sob investigação.

A judicialização da disputa

Não é apenas provável que juízes sejam chamados a arbitrar nas eleições de 2024 como, na verdade, este é um processo que já vai avançado.

Nos 50 Estados, há quase duas centenas de ações judiciais já movidas, seja para contestar regras, seja para esclarecer pontos da disputa.

Na Geórgia, por exemplo, um dos Estados mais disputados em 2020, a Assembleia Legislativa chegou a aprovar uma lei que obrigava que “os funcionários contassem manualmente o número de votos depositados em cada local de votação no dia da eleição” para que, depois, esses mesmos números fossem confrontados com contagens em máquina – algo que prometia não apenas atrasar o processo como gerar desconfianças em série pela possibilidade de erros humanos na contagem manual de algo em torno de cinco milhões de votos.

E mesma lei também permitia que os oficiais eleitorais se recusassem a certificar o resultado aferido no Estado. A regra acabou derrubada na Justiça um pouco antes do pleito atual.

Em outra ação, a procuradoria da Pensilvânia contesta legalmente uma iniciativa do bilionário Elon Musk, dono da plataforma X (ex-Twitter), de doar US$ 1 milhão por dia para um eleitor de Estado-pêndulo sorteado entre os nomes de pessoas que assinarem um manifesto pró-armas e liberdade de expressão patrocinado pelo comitê ação política de Musk, criado para apoiar a candidatura Trump.

Nos EUA é ilegal pagar para que uma pessoa vote (o voto não é obrigatório), e trocar remuneração pela escolha de um candidato. Musk nega que esteja fazendo isso ao premiar quem subscreveu seu abaixo-assinado.

Convocado a se explicar na Corte na semana passada, Musk não compareceu à audiência. Agora, ele está sujeito a uma condição coercitiva e é incerto que decisão poderia surgir após as eleições deste processo.

Tribuna Livre, com informações da BBC News

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