22/12/2024

Por que México quer que juízes federais e ministros do Supremo passem a ser eleitos por voto popular

Um dos principais pontos da reforma do Judiciário mexicano é a eleição dos juízes e magistrados federais pelo voto popular - (crédito: EPA)

Controversa reforma do Judiciário no México, considerada a mudança mais profunda deste poder nos últimos 30 anos, está prestes a obter a aprovação final.

A controversa reforma do Poder Judiciário do México – considerada a mudança mais profunda do setor nos últimos 30 anos – está muito perto de se tornar realidade.

A Câmara dos Deputados aprovou a reforma na quarta-feira (4/9). Afinal, desde a vitória nas últimas eleições, no início de junho, o governo detém maioria qualificada na Câmara, que permite aprovar emendas à Constituição sem dificuldades.

Nos próximos dias, as medidas serão discutidas no Senado, onde o governo atual está a um assento de garantir os dois terços do Legislativo.

A reforma é considerada uma parte fundamental do legado do presidente Andrés Manuel López Obrador (conhecido pelas iniciais AMLO). Seu mandato termina em 1º de outubro e, em seu lugar, assumirá a presidente eleita, Claudia Sheinbaum.

O projeto recebeu duras críticas da oposição e de organizações especializadas. Ele foi votado em meio a uma greve inédita, por tempo indeterminado, de milhares de juízes e funcionários do Poder Judiciário.

Os deputados precisaram votar a iniciativa em outro prédio, fora do Legislativo, que foi bloqueado pelos grevistas que se opõem ao projeto.

Os manifestantes consideram que a reforma prejudica a independência dos poderes e enfraquece a democracia.

O projeto foi apresentado ao Congresso em fevereiro. Na época, a coalizão Morena, do governo mexicano, ainda não contava com votos suficientes para sua aprovação.

Mas, agora, com a posse do novo Congresso, não houve obstáculos para aprovar a iniciativa na Câmara. E, no Senado, embora a coalizão não tenha a mesma maioria, não parece ser difícil negociar o único voto que falta para a aprovação.

A BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, apresenta três pontos fundamentais para entender o que muda no México com a histórica reforma do Poder Judiciário.

1. Qual é a mudança proposta

O ponto mais inovador e polêmico da reforma é a eleição, por voto popular, dos quase 2 mil juízes e magistrados do Judiciário federal, a partir do próximo ano.

A proposta é que os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – apresentem listas de candidatos para que as pessoas possam votar.

O texto estabelece que a presidência da Suprema Corte será renovada a cada dois anos, alternadamente, em função do número de votos obtidos por cada candidatura nas eleições.

No sistema atual, os 11 ministros da Suprema Corte elegem seu presidente. E eles, por sua vez, são eleitos pelo Congresso e nomeados pelo presidente da República.

O projeto de lei prevê a redução dos tempos de mandato dos juízes e ministros, além de reduzir a quantidade de magistrados da Suprema Corte e do Tribunal Eleitoral.

Ele também contempla duas eleições para renovar os cargos do Poder Judiciário. A primeira delas é extraordinária e deve ser realizada em junho de 2025. A segunda está prevista para 2027.

A eliminação da pensão vitalícia para os ministros atuais e futuros da Corte e o ajuste das suas remunerações ao limite máximo estabelecido para o presidente da República são outras medidas que fazem parte do projeto.

Por outro lado, a reforma cria um órgão disciplinar e outro administrativo para o Poder Judiciário, independentes da Corte. Eles ficariam a cargo dos temas relacionados à carreira judiciária e ao controle interno, além de elaborarem o orçamento.

O novo Órgão de Administração Judiciária será integrado por cinco pessoas, nomeadas para um período de seis anos. Um deles será nomeado pelo Poder Executivo, outro pelo Senado e os três restantes, pela Suprema Corte.

Esta é uma reforma do Poder Judiciário federal, não do sistema de justiça mexicano como um todo. Por isso, ele não afeta os sistemas locais, nem as promotorias, que analisam a maior parte dos processos do país (80%, segundo os dados oficiais).

Por este motivo, analistas defendem a necessidade de uma reforma específica para impulsionar mudanças em nível local, onde costuma ocorrer a maior parte dos casos de corrupção na Justiça.

2. Por que é polêmica

Os opositores da emenda defendem que a eleição de juízes pelo voto direto das urnas irá “politizar” a justiça.

Em outras palavras, em vez de aumentar a independência e a transparência dos juízes, a reforma irá favorecer a seleção política dos candidatos, sem considerar as capacidades profissionais de cada um e as promoções por mérito.

Uma das críticas mais frequentes é que a nomeação irá favorecer os candidatos que tiverem uma rede de contatos, que contarem com financiamento ou os aliados políticos do governo.

Existe também o receio de que a reforma abra as portas para que o crime organizado financie candidaturas ou se aproveite dos juízes menos experientes – o que já acontece atualmente, de muitas formas.

Em carta enviada ao Congresso, juízes e magistrados alertaram que a reforma do Judiciário não respeita as normas do tratado comercial entre o México, Estados Unidos e Canadá (T-MEC), em aspectos como o compromisso de estabelecer e manter “tribunais independentes para a resolução de controvérsias trabalhistas”.

Somou-se à polêmica interna a advertência da Embaixada dos Estados Unidos no México, qualificando a proposta de “risco maior” para a democracia, que poderia ameaçar o acordo comercial entre os três países, a ser revisado em 2026.

Entre outras reações contrárias, a Relatoria Especial das Nações Unidas sobre a Independência dos Juízes e Advogados pediu a reconsideração do projeto para proteger a “independência do Judiciário”.

A organização de direitos humanos Human Rights Watch também expressou um argumento similar. A proposta, segundo ela, debilita “a independência do Judiciário, a privacidade e a prestação de contas”.

Investidores também manifestaram sua preocupação com a reforma. Eles afirmam temer que o próximo governo conte com todas as ferramentas necessárias para levar adiante leis que possam prejudicar o setor empresarial, retirando a segurança jurídica dos investimentos de longo prazo ou aumentando a percepção de risco.

Já os defensores da reforma argumentam que a transformação do Poder Judiciário é uma forma de garantir que a nova presidente possa governar sem os obstáculos jurídicos enfrentados por AMLO para levar adiante sua agenda “humanista”.

O presidente atual afirmou, em repetidas ocasiões, que os tribunais se transformaram em uma trincheira da oposição, a serviço dos mais poderosos.

3. Por que AMLO considera importante para o seu legado

Durante seu mandato, Andrés Manuel López Obrador promoveu um ambicioso projeto de esquerda, que recebeu o nome de 4T – a “Quarta Transformação”.

Como ocorreu com a Independência do México, a Reforma e a Revolução de 1910, o projeto procura mudar “as bases da sociedade mexicana”, segundo o governo.

Neste contexto, a reforma do Judiciário surge como um movimento essencial na agenda de reformas do presidente. E Claudia Sheinbaum pretende dar continuidade a essas reformas.

Para dar impulso à Quarta Transformação, AMLO defende que é preciso pôr fim às estruturas de poder “corruptas” que dominaram por décadas os rumos do país – entre elas, o Poder Judiciário.

Segundo o presidente, seu objetivo é estabelecer um verdadeiro Estado de direito, para que os juízes “não fiquem a serviço de uma minoria”.

AMLO enfrentou duros confrontos com a Suprema Corte, que bloqueou suas reformas no passado. Um exemplo foi o projeto que ampliava a participação estatal no setor energético.

O governo considera que a reforma do Judiciário é a pedra angular que irá assentar as bases para a implementação de outras mudanças no país. Por isso, ele a considera um dos pilares fundamentais do projeto 4T.

O presidente mexicano tem menos de um mês, até deixar o cargo, para fazer uso da maioria obtida com a nova legislatura e aprovar seus últimos projetos.

Assim, ele poderá sustentar seu legado, antes do próximo mandato presidencial – que, no México, é de seis anos.

Inspiração política

Análise de Daniel Pardo, correspondente da BBC News Mundo no México

O que, para alguns, é a democratização da Justiça, para outros é a sua cooptação política. Mas, independente de qual for o resultado, fica claro que a inspiração da reforma é política.

Na prática, ela pretende restringir os poderes da Suprema Corte e sua capacidade de criar obstáculos para o Executivo, que teve diversas de suas reformas truncadas por argumentos judiciais, nos seis anos de mandato de Andrés Manuel López Obrador.

A reforma, em princípio, pode parecer uma forma de aproveitar a popularidade da coalizão Morena para ganhar poder. Mas, a médio prazo, se o apoio popular diminuir, ela pode ser prejudicial.

Existem eleições para juízes por voto popular em dois países do continente: nos Estados Unidos (apenas em nível local) e na Bolívia, onde a abstenção e o boicote da oposição impediram a verdadeira democratização do sistema judiciário.

Ninguém nega que a justiça mexicana precisa de reformas. Ela não sofre mudanças há anos, tem um dos mais altos índices de impunidade, herdou vícios do sistema unipartidário e as pessoas não a conhecem, nem a entendem.

A eleição de juízes também contempla apenas as postulações apresentadas pelo Executivo. Ou seja, por definição, ela hoje é politizada.

De qualquer forma, os especialistas concordam que a maior parte dos problemas do Judiciário está onde as reformas não alcançam: nas promotorias e nos sistemas regionais.

Sua aprovação na Câmara dos Deputados sem contratempos, mas com protestos pontuais, evidencia a ruptura existente entre o sistema tradicional, judiciário e político, e as novas maiorias mexicanas da 4T.

Também parece claro que a oposição saiu das eleições de junho muito fragmentada e carente de narrativa, para poder combater um movimento popular como a coalizão Morena.

AMLO irá governar até o último dia como fez desde o primeiro – sem deixar ninguém indiferente. A pergunta é como isso poderá afetar sua sucessora.

Tribuna Livre, com informações da BBC NEWS

Deixe um comentário

Leia também
Rússia denuncia "ato de terrorismo" e prende suspeito de matar general
Rússia denuncia "ato de terrorismo" e prende suspeito de matar general
'Não somos ameaça ao mundo e concordamos com direito à educação para mulheres', diz líder sírio à BBC
'Não somos ameaça ao mundo e concordamos com direito à educação para mulheres', diz líder sírio à BBC
'Libertem ele ou enfrentem as consequências': a resposta do governo Milei à prisão de policial argentino na Venezuela
'Libertem ele ou enfrentem as consequências': a resposta do governo Milei à prisão de policial argentino na Venezuela
Rússia anuncia doses gratuitas de vacinas contra o câncer em 2025
Rússia anuncia doses gratuitas de vacinas contra o câncer em 2025
MUN 1
Qual será a resposta de Putin por morte de general que chefiava forças nucleares na Rússia?
A série de assassinatos de alvos russos que revela escalada de tática da Ucrânia
A série de assassinatos de alvos russos que revela escalada de tática da Ucrânia
Análise: 'A prisão de torturas de Assad é a pior que já vi'
Análise: 'A prisão de torturas de Assad é a pior que já vi'
Cantora iraniana é presa após fazer show sem hijab
Cantora iraniana é presa após fazer show sem hijab
Os grupos e países que querem ampliar influência na Síria após queda de Assad
Os grupos e países que querem ampliar influência na Síria após queda de Assad
Policial aposentado encontra tesouro de músicas inéditas de Michael Jackson
Policial aposentado encontra tesouro de músicas inéditas de Michael Jackson
Argentina denuncia prisão de oficial da segurança nacional ao entrar na Venezuela: 'Injustificável'
Argentina denuncia prisão de oficial da segurança nacional ao entrar na Venezuela: 'Injustificável'
OEA chama de ‘aberração’ cerco do regime Maduro à embaixada argentina em Caracas
OEA chama de ‘aberração’ cerco do regime Maduro à embaixada argentina em Caracas

Equatorial Goiás: o que abre e fecha no feriado de Natal 

Clientes podem contar com os canais de atendimento digitais que estão disponíveis 24 horas por dia, todos os dias da semana  Devido ao feriado de Natal, as agências e postos de atendimento presenciais da Equatorial Goiás estarão fechados em todo o Estado, na próxima terça-feira (24), a partir das 12h,

Leia mais...

Fim do DPVAT passa na Câmara e segue para o Senado

Novo seguro obrigatório, que entraria em vigor em 2025, foi extinto antes mesmo de sair do papel. A CNseg, associação que reúne as empresas de Seguros, informou que acompanha a tramitação do projeto e aguarda a votação no Senado Desde novembro de 2023 vítimas de acidentes de trânsito estão sem

Leia mais...

Três pessoas morrem após ônibus cair de ponte em Tocantins

Além dos mortos, o acidente deixou dois passageiros feridos, eles foram socorridos pelo Corpo de Bombeiros Três pessoas morreram após um ônibus cair de uma ponte dentro do rio Crixás, no Tocantins, na manhã desta quinta-feira (19/12). Segundo a Polícia Rodoviária Federal, o acidente ocorreu no km 600 da BR-153,

Leia mais...

GDF autoriza a promoção de 287 policiais militares

Assinatura do governador Ibaneis Rocha nesta quinta-feira (19) contempla 220 praças e 67 oficiais da corporação O governador Ibaneis Rocha autorizou nesta quinta-feira (19) a redução do interstício para promoção de 220 praças e 67 oficiais da Polícia Militar (PMDF). A medida poderá antecipar em até 50% o tempo que

Leia mais...

A sua privacidade é importante para o Tribuna Livre Brasil. Nossa política de privacidade visa garantir a transparência e segurança no tratamento de seus dados pessoais.