Na largada do terceiro mandato, presidente completa período
simbólico com o desafio de montar uma base no Congresso capaz de conduzir o
país entre incertezas políticas e econômicas, além de enfrentar uma forte oposição.
(crédito: RICARDO STUCKERT)
“Pela frente, uma eternidade até o Brasil. Pra trás,
uma costa inóspita, desolada e perigosamente próxima. Sabia melhor do que
ninguém das dificuldades que eu teria daquele momento em diante.” Foi com
essas palavras que o navegador Amyr Klink descreveu o que sentiu ao lançar-se
ao mar em um barco a remo, sozinho, em um porto da Namíbia, para uma jornada
que duraria exatos 100 dias rumo ao Brasil. O trecho do livro Cem dias entre
céu e mar pode bem servir de metáfora para a primeira centena de dias — a se completar
amanhã — do governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
O solitário navegante e o presidente partiram para suas
respectivas jornadas em festa. O primeiro, no porto africano, cercado por
amigos e sob uma chuva de flores, em junho de 1984. O outro, na rampa do
Palácio do Planalto, com uma multidão a aplaudi-lo. Além da duração, ambas as
travessias foram marcadas por percalços, ameaças, conquistas e alegrias.
No caso do presidente eleito para comandar o país pela
terceira vez, a primeira tormenta veio logo no oitavo dia de governo, com a
tentativa destrambelhada de golpe de Estado perpetrada por um bando de
opositores abrigados no acampamento do QG do Exército, sob o olhar complacente
de generais e oficiais de alta patente e, também, de quem comandava as forças
de segurança da capital do país. O governo que começou em clima de
confraternização voltava a enfrentar um adversário que fora cevado com
generosidade nos quatro anos anteriores: a extrema-direita.
Os atos de 8 de janeiro provocaram uma inédita união de
forças entre os Três Poderes da República. Mais do que nunca, o presidente Lula
percebeu que teria contra si uma oposição raivosa e barulhenta. Eleito por uma
ampla composição de forças que uniu políticos da esquerda à centro direita,
Lula dedicou boa parte desses primeiros cem dias à formação de uma base
partidária e congressual que lhe permitisse aprovar as ideias que defendera na
campanha de 2022.
Em termos políticos, os desafios não são poucos. O
diagnóstico mais severo partiu do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur
Lira (PP-AL), de que o governo não tem votos sequer para aprovar projetos que
exigem maioria simples, quanto mais emendas à Constituição, que exigem quórum
qualificado.
“Teremos um tempo pra que o governo se estabilize
internamente porque, hoje, o governo ainda não tem uma base consistente nem na
Câmara nem no Senado para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais de
quórum constitucional”, disse Lira, no início do mês.
Em conversa com jornalistas, na quinta-feira passada,
Lula minimizou os problemas em relação à articulação no Congresso e até brincou
com as dificuldades que vêm enfrentando. “Se você faz política sem
dificuldade, a política não tem prazer, não tem sentido. Um pouco de confusão
ajuda a gente a gostar da política”, disse ele. Depois, tentou se
corrigir: “Quando a gente está num cargo como esse, tem que ter muito
equilíbrio. Até hoje, não senti nenhuma dificuldade com o Congresso
Nacional”.
Depois de avaliar que “é muito difícil pensar num
sistema de coalizão política” com “os partidos que nós temos”,
ele considerou a reforma tributária como o verdadeiro “teste para o Brasil
e para o governo”.
Sem carta branca
Três meses e nove dias depois da posse de Lula, a base
governista ainda não garante tranquilidade para aprovação das propostas mais
complexas do governo, como o novo marco fiscal construído pela equipe do
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a reforma tributária, cujas linhas
gerais sequer foram anunciadas pelo governo. Essa é, por sinal, uma crítica
frequente da oposição a Lula no Legislativo: apesar dos debates, as propostas
sobre reforma tributária são matérias que já tramitam nas duas Casas do
Parlamento. “Não houve nenhum projeto relevante para o país. Além disso,
há falas desastrosas (do presidente), criando um grande tensionamento político
e econômico para o país. É intenção de provocar revanchismo”, critica o
líder da oposição na Câmara dos Deputados, Carlos Jordy (PL-RJ).
Segundo ele, declarações de Lula relacionadas à economia
geram “grande tensionamento político”. “Há revolta no Congresso.
Todos estão indignados com esse comportamento. É um chefe do Executivo que só
abre a boca para atacar”, dispara o líder da oposição. Ele avalia que
muitas medidas tomadas por Lula ignoram o que considera “avanços” do
governo anterior. “Lula editou um decreto para inviabilizar o Marco Legal
do Saneamento, que foi um grande avanço do governo Bolsonaro. Nós já estamos
tomando medidas para a gente mitigar a ação destrutiva desse governo”,
disse ao Correio.
Contra o tempo
A falta de articulação política come rapidamente o tempo
de quatro meses para aprovação das medidas provisórias que inauguraram o novo
mandato presidencial. Entre elas, as que expandiram a Esplanada dos Ministérios
— de 23 pastas deixadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para 37 — e
redefiniram programas como o Bolsa Família (com o adicional de R$ 600), Minha
casa, minha vida, e Mais médicos.
A base do governo reconhece que a votação das medidas
provisórias será o primeiro teste da governabilidade, especialmente na Câmara.
“Assim que nós votarmos as MPs na Comissão Mista e encaminhar para a
Câmara, será uma prova de fogo. Mas estou confiante de que iremos
superar”, declarou o líder do governo no Congresso, senador Randolfe
Rodrigues (Rede-AP).
Ele avalia que os impasses estão sendo superado. “A
agenda já está avançando. É o governo que tem patrocinado que essas MPs, mesmo
do governo anterior, sejam votadas. E os programas sociais estão
voltando”, argumenta.
Depois de 100 dias de navegação, Amyr Klink desembarcou
em Salvador. Nos anos seguintes, deu duas voltas ao mundo no timão de veleiros
bem maiores que seu barco a remo. Cem dias depois de assumir o leme do barco
Brasil, Lula ainda têm muitas milhas pela frente até encontrar seu porto
seguro.