22/10/2024

A ressurreição da memória Xingu: indígenas ganham réplica de gruta sagrada

Cacique Akari Waurá ensina crianças sobre a própria cultura por meio das gravuras que estão na réplica da gruta - (crédito: Alaor Filho/Fotos Publicas)

Pesquisadores reconstroem a gruta de Kamukuwaká, chamada livro de conhecimento do povo Wauja e de outras 15 nações. Em 2018, etnias descobriram que o local sagrado, excluído do território indígena, foi alvo de vandalismo em 2018

Aldeia Ulupuwene (MT) — A sensação é de reencontrar um familiar querido após muito tempo sem vê-lo. Assim pode ser descrita a emoção presente na aldeia Ulupuwene, no Mato Grosso, no último dia 3. O povo Wauja, que vive no Parque Indígena do Xingu, festejava com flautas, cânticos, adornos e vestimentas coloridas o retorno de uma figura sagrada ao seu território: a Gruta de Kamukuaká. Mas, desta vez, em forma de réplica.

Para a crença dos indígenas, a rocha com desenhos rupestres era a casa do guerreiro espiritual Kamukuaká. No local, ele teria registrado todos os ensinamentos sobre a cultura e a história dos povos indígenas do Xingu. Assim, o local passou a ser visto como fonte de sabedoria ancestral, onde são feitos rituais de iniciação aos caciques. A relação sagrada com o local é ainda mais intensa com o Povo Wauja, que vive mais perto do local, a cerca de 30 quilômetros.

Apesar do papel central na espiritualidade e cultura, a gruta ficou de fora da Terra Indígena do Xingu, primeiro território demarcado do Brasil, em 1961. A área foi comprada e, atualmente, é uma fazenda de soja.

Locais como esse, de importância cultural e patrimonial para comunidades indígenas, ficaram de fora das demarcações de terra. Quando isso acontece passam a ser considerados sítios arqueológicos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Brasil (Iphan). Ao todo, existem cerca de 25 mil no país, em terras públicas e privadas.

A gruta do Kamukuaká foi tombada como patrimônio cultural em 2010 pelo Iphan, como forma de impedir que o local sagrado para os indígenas fosse modificado. No entanto, em 2018, o receio dos indígenas se concretizou. A gruta foi vandalizada e os símbolos de Kamukuaká arrancados da rocha.

A descoberta

“Quando cheguei lá, senti como se tivesse perdido alguém da família”, relembrou emocionado o cacique Akari Waurá, de Topepeweke, uma das quatro aldeias onde o povo Wauja vive. Ele estava presente no dia em que os indígenas descobriram o ataque ao monumento cultural.

Akari contou que, quando criança, o pai o levava para a gruta para repassar ensinamentos sobre os costumes, conversar sobre liderança e também aprender o significado dos desenhos na pedra, em sua maioria de animais.

Com a gruta localizada em uma propriedade privada, Akari e seus familiares ficaram quase 20 anos sem visitar o local. Eles eram proibidos de entrar na terra pelos proprietários.

Não se sabe ao certo quando a gruta foi vandalizada; o ato foi descoberto em setembro de 2018. A visita à gruta se deu por uma atividade de documentação dos indígenas com as equipes da Factum Foundation, ONG internacional — especializados em documentar artefatos culturais — e do People’s Palace Project (PPP), centro de arte e pesquisa ligado à Universidade de Queen Mary, em Londres, na Inglaterra.

“Desde o início foi tratado como um ato de vandalismo, uma tentativa de apagamento de memória da comunidade, de tirar a sacralidade de um território que é um patrimônio cultural dos povos do Alto Xingu”, defendeu Thiago Jesus, gerente de Projetos Indígenas e Climáticos da PPP, que presenciou a descoberta do vandalismo.

O ataque ao patrimônio está em segredo de justiça no Ministério Público de Mato Grosso. Até o momento, ninguém foi responsabilizado pelo ato.

Perda ancestral

A destruição da gruta do Kamukuaká gerou uma comoção enorme nas 16 etnias que vivem na Terra Indígena do Xingu. “Acredito que Kamukuaká é o pilar central de todos os acontecimentos da linha do tempo e do conhecimento Wauja”, ressaltou a cacica Pere Waurá, da Aldeia Piyulewene. Ela relembra que, quando era criança, ia com os pais visitar a gruta em uma viagem que durava dez dias, parte feita em canoa e outra caminhando.

Mesmo as populações que não são tão próximas geograficamente da gruta, pela grande extensão territorial do Xingu, sentiram a perda. “É a mesma coisa que tirar uma família de um povo. É muito triste a perda. A nossa cultura precisa muito disso”, lamentou o cacique Mairawe Kaiabi, representante dos Kawaiwete, que também vivem no Parque Indígena do Xingu.

“Quando fizeram essa demarcação, a cabeceira do rio [Batovi, nascente do Xingu] ficou de fora e o patrimônio cultural também. O importante antes era preservar a terra, mas não pensaram direito no que ficava de fora e o que mantinham. Eles não sabiam que, para a nossa cultura, perder esse patrimônio é o começo da perda da nossa história”, explica Mairawe, um dos caciques mais velhos da região.

Iniciativa internacional

Com a evidente perda cultural vivida pelos povos do Xingu, as duas organizações que tinham iniciado a documentação da gruta de Kamukuaká propuseram aos indígenas uma réplica da rocha. “A cultura é internacional, essa gruta pertence ao patrimônio mundial e também aos povos xinguanos. É uma luta do mundo e para mostrar que a gente pode, sim, fazer a diferença e proteger a cultura”,diz Paul Heritage, presidente da PPP e cavaleiro da Ordem do Rio Branco, nomeado pelo governo brasileiro.

Os Waujas contam que, ao serem consultados sobre a ideia, não achavam que daria certo. Mas, mesmo assim, integraram todo o processo de reconstrução de memória da gruta. Isso porque havia poucos registros fotográficos da gruta original e somente algumas gravuras restantes nas rochas.

Akari e Pere fizeram parte do trabalho, que incluiu oficinas onde quem conhecia a gruta original desenhavam as figuras que se lembravam. A Factum Foundation, que já produziu réplicas de tumbas de faraós egípcios e obras do pintor Michelangelo, comandou todo o processo de revitalização. A construção foi feita em Madrid, na Espanha, sede da instituição, com algumas visitas ao Xingu.

“Há uma diferença que marca todo este projeto. As pessoas sabem ler isto, sabem o que colocaram ali e podem transmitir o que colocaram. Em muitos outros projetos, isso é impossível porque a cultura foi perdida há milhares de anos. Os estudiosos podem ler os hieróglifos, mas não podem interpretar. Este aqui está vivo. As pessoas sabem o que têm, contam aos seus filhos e netos”, reflete Juan Carlos Arias, líder da Factum para a instalação da gruta.

A construção da réplica demorou cerca de um ano para ficar pronta, entre 2018 e 2019. Mas ainda enfrentou muitos desafios no percurso de 8 mil quilômetros para chegar na aldeia Ulupuwene, escolhida pelas lideranças indígenas para abrigar o monumento sagrado, devido ao acesso e localização entre as quatro aldeias dos Waujas.

Pesando uma tonelada, com oito metros de altura e quatro de largura e profundidade, a obra ficou parada no ateliê espanhol por falta de verba para levá-la ao Brasil. Enquanto as organizações internacionais tentam arrecadar recursos, a pandemia do coronavírus paralisou todo processo por anos.

Depois disso, as entidades conseguiram transportar a réplica de barco até o Porto de Santos, em São Paulo. Lá a peça foi dividida em quatro partes para ser transportada.

Enquanto isso, os indígenas realizaram mutirão na comunidade indígena para construir o Centro Cultural e de Monitoramento Territorial, o primeiro museu do Xingu, na aldeia Ulupuwene. Foram quatro meses fazendo os tijolos de barro, com a terra da sua própria “casa” para que os indígenas finalizassem o local que abrigaria a réplica. No final de setembro, seis anos depois de descobrirem a destruição da gruta original, a réplica chegou à aldeia.

Celebrar e reivindicar

O dia seguinte a um eclipse foi escolhido para a inauguração da gruta Kamukuaká, de volta ao território do Xingu. Indígenas de outras aldeias foram convidados a participar das mais de doze horas de celebração.

Desde a madrugada, os indígenas tocavam flautas. No amanhecer, iniciaram as pinturas corporais, com símbolos semelhantes aos da gruta, e os adornos coloridos utilizados nas celebrações. Danças embalaram o dia inteiro na aldeia, inclusive sob o sol escaldante do meio-dia. Juntos, eles caminharam até a casa onde está abrigada a réplica.

“Os desenhos que foram destruídos da original estão todos ali. Isso é importante para mim”, disse emocionado o cacique Elewoka Waurá, da aldeia Ulupuwene. A liderança indígena ainda contou que, no dia em que a réplica chegou ao povoado, ele sonhou com os espíritos muito felizes e dançando em volta da gruta.

O presidente da Associação das Terras Indígenas do Xingu (Atix), Ianukula Kaiabi Suia, definiu a data como “marcante” e importante para a cultura brasileira. “O Brasil foi construído em cima de um território indígena e a sociedade brasileira precisa aprender a conviver com isso. O que a gente tem percebido, tanto de governo quanto sociedade, é a ignorância de saber e reconhecer o que a cultura indígena representa para a cultura brasileira”, criticou.

Representando o Iphan, Fernando Medeiros, superintendente do instituto no MT, fez questão de conhecer o patrimônio depredado antes de ver a réplica para entender a semelhança. “Houve um dano do ponto de vista material, mas aquele lugar ainda tem uma potência extraordinária na imaterialidade em tudo que diz sobre a cultura indígena”, comentou.

Fiscalização

Medeiros ainda acrescentou que, apesar da depredação, o tombamento foi muito importante na história da gruta para impedir projetos como a da construção de uma usina hidroelétrica ou rodovia no local. Sobre o ato de vandalismo, ele atribuiu a falta de controle de entrada e saída na fazenda, que era muito utilizada para pesca predatória, e ao sucateamento que a autarquia pública sofreu no último governo federal. Isso, segundo ele, afetou muito a fiscalização dos patrimônios culturais.

Juntos, Atix e Iphan formaram um Grupo de Trabalho (GT) para analisar o que será feito a respeito da gruta original. O acesso dos indígenas ao local está sendo negociado com os proprietários, bem como a possibilidade de tombar todas cabeceiras de afluentes do Rio Xingu. As ideias ainda estão em fase inicial de debate. Já para a réplica, o futuro previsto é de ensinar as crianças sobre a própria cultura, utilizando as gravuras que estão na réplica da gruta. Entre os desenhos, estão formatos de animais e alguns símbolos utilizados em artesanatos produzidos pelos povos do Xingu. Futuramente, o espaço também deve receber turistas, como forma de auxiliar na subsistência das populações indígenas.

Tribuna Livre, com informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Brasil (Iphan).

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