09/05/2025

Nas entrelinhas: O legado de Michel Temer que assombra o governo Lula

“Hoje, aos 82 anos, Temer é reconhecido pelas elites do país como um bom presidente, devido às reformas que fez nos seus dois anos de mandato, assim como fora Itamar Franco”

Na noite do dia primeiro de junho, quinta-feira, após a posse da nova direção da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), o ex-presidente Michel Temer, um dos palestrantes e convidado de honra do presidente da entidade, Vicente Martins Prata Braga (CE), circulava entre autoridades e demais convidados “feliz como um pinto no lixo” — como diria o falecido cantor Jamelão, o maior “intérprete” do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues.

Era um daqueles fugazes momentos de glamour e felicidade dos poderosos de Brasília, numa posse festiva à beira do Lago Paranoá, que começou com pompa e circunstância e acabou com todo mundo dançando. Temer fez uma palestra, participou da gravação de uma longa entrevista a alguns jornalistas e voltou para a festa. Circulou sorridente entre as mesas, tirou fotos com tietes, levou tapinha nas costas, reviveu o fascínio do poder sem a adrenalina que o “energizava” na Presidência da República.

Hoje, aos 82 anos, Temer é reconhecido pelas elites do país como um bom presidente, devido às reformas que fez nos seus dois anos de mandato, assim como fora Itamar Franco. Desde quando deixou o cargo, tem saudade do “Fora Temer!”, do qual se livrou, ironiza, mas não a pretensão de voltar à função.

A noite dos procuradores foi digna das colunas sociais, uma daquelas festas nas quais se confraternizam mesmo os inimigos figadais. Em nenhum outro lugar seria imaginável ver o sisudo ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no meio do salão, dançando com a vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão, à vista do corregedor do Conselho Nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, ministros de Cortes superiores; governadores e parlamentares. Que ninguém se iluda, em razão da radicalização política, esses momentos de confraternização dos poderosos de Brasília são cada vez mais raros.

A propósito da felicidade geral da República, o filósofo, matemático, físico, professor e bibliotecário Immanuel Kant (1724-1804), que viveu na época da Revolução Francesa e de George Washington na Presidência dos Estados Unidos, dizia que “nenhum princípio da lei válido pode ser baseado na felicidade” (Teoria e prática). Remetendo-se a Platão, dois mil anos depois, sustentou que a que “as ilusões variáveis e conflitantes a respeito do que é felicidade tornam impossível todos os princípios fixos, de modo que a felicidade, por si só, jamais pode ser um princípio aplicado às leis”. Por ironia, o poder não é sinônimo de felicidade, o próprio Temer que o diga.

A abordagem kantiana sobre o poder, que inspirou Hanna Arendt e outros filósofos mais contemporâneos, pode ser resumida em dois deveres de governo: proteger os direitos e as liberdades do povo como uma questão de justiça e promover a felicidade do povo, desde que pudessem fazê-lo sem diminuir os direitos e a liberdade das pessoas”. As teses liberais de Kant, porém, foram usadas para dar sustentação à agenda de reformas neoliberais da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, com o argumento de seria uma violação da liberdade individual esperar que o povo pague impostos para a felicidade de outros. Hoje, esse é um pensamento majoritário na nossa sociedade e no Congresso brasileiro.

Semipresidencialismo

Chegamos ao legado de Temer que atormenta o governo Lula. Três vezes presidente da Câmara e vice-presidente antes de assumir a Presidência, com o impeachment de Dilma Rousseff, o ex-presidente é um constitucionalista e um político experiente, capaz de discernir, como fizera Kant, aquilo que pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática. “O Executivo não governa sozinho, o poder é compartilhado com o Congresso. Desde a Constituição de 1988, ao longo do processo político, o presidencialismo se esfarrapou, sofremos dois processos de impeachment. Aceitei a realidade de que o presidente da República não governa sozinho, adotei o semi-presidencialismo na prática”.

Quando assumiu o poder, o ex-presidente Jair Bolsonaro tentou capturar o Congresso, não através dos partidos, mas por meio da incorporação ao governo da representação corporativa que se consolidava no parlamento, principalmente de evangélicos, ruralistas, policiais e militares, amalgamados pela ação de uma extrema-direita ideológica. Não deu certo. Bolsonaro acabou capturado é pelo Centrão. Para evitar um impeachment, o preço foi entregar a Casa Civil para o senador Ciro Nogueira (PI), o presidente do PP, e o Orçamento da União para a Câmara, presidida por Arthur Lira (PP-AL).

O que era feito informalmente por Temer, passou a ser institucionalizado. Mais: houve aumento do valor das emendas impositivas de deputados, senadores e bancadas estaduais e um “orçamento secreto”, que blindou eleitoralmente a maioria dos atuais mandatários e fortaleceu ainda mais o Congresso na relação com o Executivo. Lira foi além: agarrou a proposta de semi-presidencialismo com as duas mãos e criou um grupo de trabalho para estudar o assunto na Câmara.

O presidente da Câmara já disse que nenhuma das reformas aprovadas pelo Congresso nos governos Temer e Bolsonaro será revertida pelo governo Lula, a exemplo do que ocorreu com o marco do saneamento. Depois da aprovação do novo arcabouço fiscal e da estrutura do governo, com modificações na área ambiental, Lira só tem compromisso com Lula para aprovar a reforma tributária. Os demais projetos serão negociados caso a caso. Lula foi eleito com 50,9% dos eleitores, o Congresso representa 100%, com uma maioria conservadora e antipetista. Lira pode apresentar a proposta de semi-presidencialismo na primeira crise institucional do governo. Seria uma alternativa a um novo processo de impeachment, que convulsionaria o país.

O Executivo não governa sozinho, o poder é compartilhado com o Congresso.

(crédito: Caio Gomez)

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