Decisão é anunciada em meio a embates com o governo central
do Reino Unido, envolvendo um veto do Supremo Tribunal à realização de novo
referendo sobre a independência do país e o bloqueio a uma lei regional
relativa à transição de gênero
(crédito: AFP)
Primeira mulher a governar a Escócia, com grande
popularidade no país, a independentista Nicola Sturgeon surpreendeu, ontem, ao
renunciar ao cargo de primeira-ministra, após mais de oito anos no poder. O
anúncio ocorreu meses após dois fortes embates com o governo central do Reino
Unido, que ela logo tratou de dissociar de sua decisão. “Na minha cabeça e
no meu coração eu sei que o momento chegou, que é a hora adequada para mim,
para o partido e para o país”, afirmou em uma entrevista coletiva em
Edimburgo.
Aos 52 anos, Nicola Sturgeon liderava havia muito tempo a
luta por uma segunda consulta sobre a autodeterminação do país de 5,5 milhões
de habitantes. No ano passado, porém, provocado por Londres, o Supremo Tribunal
britânico se pronunciou contra a nova consulta.
Em dezembro, um novo atrito, daquela vez em torno de uma
lei regional que facilitava a transição de gênero, permitida a partir dos 16
anos e sem a necessidade de diagnóstico médico. A medida provocou grande
polêmica nos círculos feministas e foi bloqueada pelo primeiro-ministro
britânico, o conservador Rishi Sunak, um fato sem precedentes.
Na entrevista, Sturgeon enfatizou que a renúncia
“não é uma reação a pressões de curto prazo”, e sim a convicção de
que “nenhum indivíduo deve ser dominante em um sistema por muito
tempo”. Sunak, por sua vez, respondeu de maneira discreta ao anúncio,
agradecendo Sturgeon por seu “longo serviço” e desejando “o
melhor para o futuro”.
Longa reflexão
A premiê permanecerá no cargo até a designação do
sucessor. “Esse trabalho é um privilégio, mas também muito difícil. Sou um
ser humano, além de uma política”, destacou, antes de afirmar que refletiu
muito sobre a decisão depois de colocar a carreira à frente da vida pessoal
durante três décadas.
A entrega do cargo, no entanto, não significa que
Sturgeon deixará a política. A primeira-ministra enfatizou que permanece
comprometida com temas que incluem melhores oportunidades para os jovens e
“obter a independência”. “É uma causa à qual dediquei toda minha
vida e na qual acredito”, declarou, com a fisionomia cansada.
Advogada de formação e considerada uma política
brilhante, temida por seus oponentes em Edimburgo como em Londres, Sturgeon
defendeu um programa político de esquerda, com políticas sociais que na opinião
dela foram abandonadas pelo Partido Trabalhista.
A notícia surpreendeu tanto apoiadores quanto adversários
políticos. No mês passado, após a inesperada renúncia da então
primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, a chefe do governo da
Escócia asseverou que estava “repleta de energia” e não sentia que o
momento de deixar o poder estava próximo.
Nicola Sturgeon se tornou líder do Partido Nacional
Escocês (SNP) e do governo autônomo após a renúncia de seu mentor, Alex
Salmond, em 2014, depois que a maioria dos eleitores (55%) votou pela
permanência do país no Reino Unido. Desde então, ela retomou a luta pela
independência, que ganhou novo impulso após o Brexit — os escoceses votaram de
forma esmagadora contra a saída da União Europeia, iniciada em 2017 e concluída
no início de 2020.
Nos últimos anos, a primeira-ministra defendeu
ardorosamente a convocação de um segundo referendo. Diante da rejeição do
governo central de Londres, recorreu ao Judiciário, que barrou a pretensão.
A partir daí, prometeu transformar as próximas eleições
gerais, previstas para janeiro de 2025 no mais tardar, em um referendo sobre o
tema. Acabou sendo duramente criticada por essa postura, inclusive dentro do
próprio partido. “É uma decisão que deve ser tomada pelo SNP de maneira
coletiva e não apenas por mim”, disse ontem.
Pandemia
Com elevados índices de popularidade por sua gestão
elogiada da pandemia de covid-19, que contrastou com as caóticas políticas do
primeiro-ministro britânico Boris Johnson, Sturgeon acumulou vitórias
eleitorais e conquistou uma nova maioria para o SNP no Parlamento regional, em
aliança com os ecologistas, em maio de 2021.
No entanto, ela viu sua imagem abalada após a aprovação,
em dezembro do ano passado, de uma lei para facilitar a transição de gênero. No
mês seguinte à polêmica, 44% dos escoceses se declararam favoráveis a Sturgeon
contra 50% em outubro, de acordo com dados divulgados nesta quarta-feira pelo
instituto de pesquisas YouGov.
Nascida na cidade industrial de Irvine, ao sudoeste de
Glasgow, com pai eletricista e mãe enfermeira, Sturgeon se filiou ao SNP aos 16
anos e foi vice-coordenadora da ala jovem. Peter Murrell, seu marido, é o
diretor-geral do partido. O casal, que não tem filhos, se conheceu há mais de
20 anos em uma reunião da juventude do SNP, do qual ela se tornou uma das
primeiras representantes no Parlamento autônomo escocês, em 1999, quando foi
formado.