O Serviço
Federal de Segurança russo (FSB, antiga KGB) anunciou que “frustrou as
atividades ilegais” de Gershkovich.
(crédito: Kirill Kudryavtsev/AFP)
A prisão do norte-americano Evan Gershkovich, 31 anos,
repórter do The Wall Street Journal (WSJ), acrescentou ainda mais tensão às
relações entre Estados Unidos e Rússia, que vivem uma fase de turbulência,
agravada pela invasão à Ucrânia. Em um caso sem precedentes na história recente
do país, o jornalista foi acusado pelo crime de “espionagem” e terá
que cumprir pena inicial de dois meses de detenção — que poderá ser prolongada
ao fim do período. Se a condenação for confirmada pelo tribunal, Gershkovich
corre o risco de passar entre 10 e 20 anos atrás das grades, de acordo com o
artigo 276 do Código Penal. O primeiro jornalista estrangeiro preso em
território russo desde o fim da Guerra Fria foi capturado, na quarta-feira, em
Yaketerinburg, a 1.280km de Moscou. Gershkovich estaria na cidade para fazer
uma reportagem.
O Serviço Federal de Segurança russo (FSB, antiga KGB)
anunciou que “frustrou as atividades ilegais” de Gershkovich.
“(Ele) Agia sob instruções do lado americano, coletando informações que
constituíram segredo de Estado sobre as atividades de uma das empresas do
complexo industrial militar russo”, afirmou o organismo. Em seu site, o
Wall Street Journal informou que “nega veementemente as alegações do FSB e
busca a imediata libertação” do “confiável” e
“determinado” repórter. “Nós nos solidarizamos com Evan e sua
família.”
A Casa Branca repudiou a detenção, qualificou as
acusações como “ridículas” e recomendou aos cidadãos dos EUA para que
não viajem à Rússia. “A perseguição de cidadãos americanos pelo governo
russo é inaceitável. Condenamos a detenção do senhor Gershkovich nos termos
mais fortes”, declarou a porta-voz do governo Joe Biden, Karine
Jean-Pierre. Por sua vez, o secretário de Estado, Antony Blinken, admitiu
“profunda preocupação” com o caso. “A prioridade do Departamento
de Estado é a segurança do cidadão dos EUA no exterior. Se você é um cidadão
dos EUA vivendo ou viajando pela Rússia, por favor, saia imediatamente”,
aconselhou.
Para o cientista político Vicente Ferraro — pesquisador
do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (USP),
especialista em política russa e conflitos do espaço pós-soviético —, não
haverá grande impacto nas relações entre Moscou e Washington. “Na verdade,
as relações já estavam em um grau muito baixo. Elas são muito mais impactadas
pelas interações do conflito na Ucrânia do que por esse episódio concreto. O
fornecimento de armas e as sanções impostas e promovidas, principalmente pelos
Estados Unidos, têm potencial de agravante”, explicou ao Correio.
Ferraro vê uma tentativa do Kremlin de cercear a atuação
de jornalistas estrangeiros na Rússia. “Com o episódio atual, repórteres
estrangeiros ficarão muito mais cautelosos e terão mais receio de fazer
entrevistas. Haverá, entre a população russa, uma percepção de que jornalistas
são potenciais inimigos e podem ser espiões”, disse. Ele não descarta o
uso da prisão de Gershkovich como moeda de barganha para troca por espiões
russos presos nos EUA ou em outros países do Ocidente. “Um exemplo
emblemático foi a troca da jogadora de basquete Brittney Griner, que estava
presa em Moscou por suposto porte de maconha, pelo traficante de armas Viktor
Bout, que estava detido nos Estados Unidos”, lembrou.
Ainda segundo Ferraro, a perseguição a jornalistas não é
um fenômeno novo e tem sido recorrente desde o início do governo de Vladimir
Putin. “É interessante observar que os grandes canais midiáticos na
Rússia, especialmente a televisão, são controlados pelo Estado. Dificilmente
esses canais têm espaço para posicionamento crítico sobre o governo e a guerra
na Ucrânia”, acrescentou. O estudioso acredita ser difícil imaginar uma
situação em que um jornalista de ascendência russa fosse incorrer em uma
atitude “tão arriscada”, ainda mais por se tratar de cidadão
norte-americano. “É fato muito consolidado na Rússia a ideia de que os
órgãos de segurança acompanham, de muito perto, a atividade jornalística.
Dificilmente o julgamento de Gershkovich será público, e as provas, tornadas
públicas”, advertiu.
Semelhanças
O também norte-americano Paul Whelan, um ex-fuzileiro
naval de 50 anos, foi preso pela Rússia e condenado a 16 anos de prisão, em 28
de dezembro de 2018. Em entrevista ao Correio, David Whelan contou que o irmão
foi transferido do centro de detenção provisória de Lefortovo — onde
Gershkovich é mantido — para um campo de trabalho forçado na República da
Mordóvia, cerca de oito horas a leste de Moscou. “Ele está lá desde
setembro de 2020 e tem outros 12 anos da pena a cumprir, a menos que seja solto
antes”, afirmou, por e-mail.
David aponta similaridades entre as prisões do irmão
e de Gershkovich. “Houve um comunicado à imprensa por parte do site do
FSB, anunciando acusação de espionagem; uma detenção pré-julgamento em
Lefortovo; o confinamento até a marcação da audiência, por dois meses; um
advogado apontado pelo FSB; e o Kremlin admitindo que o repórter foi pego em
‘flagrante’, assim como aconteceu com Paul”, explicou. “Em parte,
porque é o teatro jurídico russo. Todos os atores sempre fazem a mesma peça, ao
criarem casos falsos e condenarem pessoas sem evidências. Mas, ainda assim,
isso é assustador.”