O prometido
“revogaço” do desarmamento, pautado pelo governo eleito de Lula, pode
gerar reações de revolta por parte dos milhares de CACs do país
(crédito: Maxzerz/Unsplash)
O “libera geral” do armamento, instituído pelo
governo do presidente Jair Bolsonaro, tem data para acabar. Com a posse do
presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva a expectativa é de que uma série de
decretos que afrouxaram o controle das armas sejam revogados — é o chamado “revogaço
das armas”.
Apesar de aguardada por aliados, a ação pode trazer
problemas ao novo governo. O ponto crítico deve ser o recolhimento ou não do
gigantesco arsenal de armas de grosso calibre, como fuzis, que já estão em
posse dos colecionadores, atiradores e caçadores, os CACs. Segundo o deputado
Delegado Waldir (União-GO), integrante da bancada armamentista na Câmara, o
diálogo acontece em busca de um meio termo, especialmente após a sinalização do
partido União Brasil a favor do governo Lula.
“O cidadão de bem, que esteja devidamente
documentado, deve ter direito a ter sua arma de fogo. É claro que foram
cometidos alguns excessos em relação a quantidade de armas e quantidade de
munições, em especial dos CACs”, pondera.
Conforme o Correio noticiou em setembro, com os dados
fornecidos pelo Exército, há mais de 430 mil armas de grosso calibre nas mãos
de civis. Esse tipo de armamento deve voltar a ser restrito, e até mesmo a
posse está sendo reconsiderada. A deputada Carla Zambelli (PL-SP), que
protagonizou uma perseguição armada a um jornalista negro pelas ruas de São
Paulo na véspera do segundo turno das eleições se opõe ao revogaço. “Um
povo desarmado será escravizado e ainda roubado em sua propriedade
privada”, disse.
A parlamentar, que ainda não cumpriu a determinação do
ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em realizar a
entrega da arma que apareceu portando no vídeo, optou pela cautela e concluiu a
conversa dizendo que “mais que isso não posso falar”. Outra fonte,
próxima ao governo Bolsonaro, adianta que se houver apreensão de armamento
“vamos ter problemas, vai ser ruim, vai ter resistência” — sem
detalhar que tipo de objeção poderia ocorrer. O argumento trazido é o do
direito à propriedade.
Propostas da transição
Nas propostas apresentadas pela equipe de transição,
ficou em destaque a restrição de armas e munições mais potentes para a
população civil. Este armamento será restrito às forças de segurança, e o
arsenal atual deve ser recolhido por meio de um programa de entrega voluntária.
Ainda é estudado o recolhimento dos equipamentos com compensação financeira.
Além da retirada de circulação do armamento, outra
sugestão da equipe de transição é a limitação na compra de munições: hoje são
liberados 5 mil cartuchos por ano. O limite cairia para apenas 100 por ano para
cada arma. Cada cidadão poderá ter apenas quatro armas. Essa regulação deve ser
aplicada nos portes de legítima defesa, que são aqueles concedidos pela Polícia
Federal (PF), que deverá atuar de forma mais rígida na comprovação de efetiva
necessidade, seja na concessão ou na renovação. Espera-se, ainda, o fim do
chamado “porte camuflado”, em que a autorização de trânsito permitia
a arma municiada nos deslocamentos.
Os CACs devem voltar aos padrões anteriores ao governo
Bolsonaro. Hoje o grupo tem acesso anual de até mil munições por arma de uso
restrito e cinco mil para cada arma de uso permitido, e podem ter até 60
equipamentos — sendo 30 de uso restrito. Tais mudanças foram estabelecidas por
decretos.
Com a flexibilização fomentada ao longo dos quatro anos
de governo, o número de armas de fogo nas mãos dos CACs chegou ao patamar de
1.006.725 unidades registradas até julho deste ano — em 2018 o número
correspondia a 350.683 armas no país. Os dados foram divulgados pelos institutos
Igarapé e Sou da Paz, em agosto deste ano, obtidos por meio da Lei de Acesso à
Informação (LAI).
Decretos
A proposta do novo governo é que os novos ministros da
Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, acompanhem a revogação de oito
decretos e uma portaria interministerial. Apesar da conhecida posição de Lula
quanto às armas, a tendência é que o processo não seja tão rápido quanto o
desejado. O fim de novas concessões não resolverá as armas já em circulação, e
o tema deve ainda ter alguns embates políticos e jurídicos. O cenário pode
representar desafio para o próximo governo efetivar suas promessas
desarmamentistas.
O inconformismo da bancada armamentista em relação ao
“revogaço” tem como pilar a defesa do direito adquirido e do direito
à propriedade. A alegação é refutada por especialistas que julgam que a posse
de armamentos, em especial de grosso calibre, foi uma concessão do Estado, e
não configura um direito adquirido. A tese é defendida pelo policial federal e
pesquisador da área, Roberto Uchôa.
Para ele, a retomada das armas pode ter dois caminhos.
“Uma corrente defende que, quando passar a ser proibido, as pessoas terão
de entregar, com ou sem compensação financeira. Enquanto outra corrente defende
que se proíba o comércio e se aumente a fiscalização em cima das armas
existentes. Proibindo a venda de munição, você vai ter um fuzil que não vai
servir para nada. Sequer poderá ir com ele para o clube de tiro”, aponta
Uchôa.
Além dessas mudanças na legislação, é previsto que se
intensifique a fiscalização e que se reduzam os prazos de renovação dos
registros existentes, os quais ainda devem ter encarecimento das taxas
administrativas. Tudo isso deve tornar a posse dessas “armas de
guerra” pouco vantajosa. Espera-se que o custo financeiro e burocrático
incentive a entrega voluntária ao Estado.
Riscos
Um dos riscos em relação às medidas de desarmamento,
antecipam especialistas, é que as armas legais, em vez de recolhidas pelo
Estado, sejam desviadas para o mercado ilegal ou para o crime organizado. Um
fuzil comprado legalmente custa em torno de R$ 10 mil. No mercado ilegal é
possível que custe até sete vezes mais.
Na opinião de Uchôa, que integrou o grupo técnico de
Justiça e Segurança Pública da transição, o caminho menos traumático para o
novo governo seria promover uma campanha de devolução voluntária, com a
indenização ao cidadão, e a transferência do armamento para as forças de
segurança. “Para se trabalhar com a questão do armamento pesado, assim que
proibido, deveria ser criada uma política para que a pessoa, voluntariamente,
entregue essa arma mediante uma indenização”, opina.
Mas essa indenização, que teria um valor fixo, ou
chegaria a cerca de 30% do valor de tabela, não agrada o setor. Para o deputado
Delegado Waldir, isso seria injusto com aqueles que compraram o armamento
amparado nas decisões vigentes do governo Bolsonaro. “Desde que
devidamente indenizadas, havendo um meio termo, não vai ter problema, mas
chegar criando um revogaço, aí com certeza, vai trazer problema.”
Quanto a possibilidade de impedir o trânsito de armas ou
a compra de munições, Delegado Waldir acredita que a mudança irá “criar
milhares de criminosos”. “As pessoas não vão deixar de comprar
munições, não vão deixar de transportar para treinar”, aposta o
parlamentar.